Expulsos de suas terras, onde foi instalado um reformatório indígena durante a ditadura militar, os Krenak sofreram profunda desintegração de sua cultura e chegaram a ser impedidos de conversar na língua materna
O Ministério Público Federal (MPF), através do Grupo de Trabalho Violações dos Direitos dos Povos Indígenas e Regime Militar, requereu ao Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que conceda anistia política ao Povo Indígena Krenak, conforme prevê o artigo 2º da Lei 10.559/2002.
Na prática, o ato resultaria no reconhecimento oficial das violações aos direitos humanos perpetradas por agentes de estado contra os Krenak, com um pedido público de desculpas.
A Lei 10.559/2002 define como anistiados políticos todos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, foram “punidos com transferência para localidade diversas daquela onde exerciam suas atividades profissionais, impondo-se mudanças de local de residência(…)”, exatamente o caso do Povo Indígena Krenak, que, especialmente durante o período do regime militar, foi expulso de suas terras e submetido a todo tipo de violência e tortura, física e moral.
O MPF relata, no requerimento encaminhado ao Ministro da Justiça, que, naquele período, “houve forte intervenção governamental nas terras indígenas, as quais provocaram mortes, violações à integridade física dos índios e profunda desintegração nos modos de vida de várias etnias, colocando em risco sua existência enquanto povo”, para acrescentar que “os governos militares se caracterizaram pelo desrespeito às instituições indígenas, pela sistemática expulsão dos indígenas de suas terras, e pela vulnerabilização e destruição biológica e cultural de comunidades indígenas”.
No caso dos Krenak, que ocupavam terras situadas à margem esquerda do rio Doce, no município de Resplendor, região Leste do estado de Minas Gerais, a ditadura militar provocou prejuízos gravíssimos à sua cultura: a etnia foi proibida de se comunicar em sua língua e de realizar seus rituais sagrados e suas danças. Os índios foram mantidos afastados de suas terras, tendo sofrido dois exílios, que provocaram o afastamento dos locais e dos materiais utilizados para suas práticas tradicionais, além de provocar a dispersão de diversas famílias pelo território nacional.
Para o procurador da República Edmundo Antonio Dias, que integra o Grupo de Trabalho Violações dos Direitos dos Povos Indígenas e Regime Militar, “os dois exílios a que foram submetidos os Krenak, a proibição de que se comunicassem na língua materna, a prática de tortura, a instalação do chamado reformatório, o funcionamento da Guarda Rural Indígena e os graves danos psicológicos que esse contexto repressivo gerou, na etnia como um todo, configuram verdadeiro genocídio cultural, um etnocídio que precisa ser reparado de modo coletivo pelo Estado brasileiro, porque a etnia Krenak foi violada enquanto povo, o que transcende a dimensão individual.”
Em diversos depoimentos ao MPF, indígenas remanescentes daquele período lamentaram o prejuízo incalculável à perpetuação da própria etnia e da cultura do Povo Krenak: como eram impedidos, pelos militares, de falar em sua própria língua e até mesmo chegavam a batizar os filhos com nomes de policiais militares que trabalhavam no Reformatório Krenak, as gerações mais novas foram perdendo os laços com sua própria identidade étnica, tradições e modos de vida.
Na investigação dos fatos, o MPF ouviu, desde 2014, diversos indígenas e testemunhas nas aldeias Atorã, Naknenuk, Nakrehé e Watu, tendo visitado, também na Terra Indígena Krenak, as ruínas do Reformatório Krenak, em Resplendor/MG, bem como, na Terra Indígena Maxakali, nos municípios de Bertópolis/MG, Ladainha/MG e Santa Helena de Minas, esteve, entre outras, nas Aldeias Verde e Água Boa.
Presídio Krenak
As graves violações sofridas por diversos povos indígenas durante o regime militar ficaram, por muito tempo, invisibilizadas, e chegaram a surpreender pesquisadores quando os fatos históricos começaram a ser resgatados.
Um desses registros, por sinal, inclui expressamente o Povo Krenak. Em 1966, a Polícia Militar instalou, sem qualquer previsão legal que o fundamentasse, um presídio na terra indígena, o Reformatório Krenak, para onde foram mandados 94 índios de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país.
Os indígenas eram aprisionados no reformatório, conhecido entre eles por Presídio Krenak, por diversos motivos, tais como embriaguez, manutenção de relações sexuais e saída não autorizada da terra indígena, e lá eram submetidos a todo tipo de arbitrariedade: trabalhos forçados, tortura e maus tratos. Havia uma espécie de solitária no Reformatório, que os índios chamavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e noite com água escorrendo do encanamento.
Segundo o MPF, “o fato de o presídio ter sido implantado em terras Krenak fez com que o controle militar sobre os membros da etnia que não estavam confinados fosse também muito incisivo”. Além de serem obrigados, inclusive crianças, a trabalhos forçados, os policiais militares também proibiam qualquer manifestação cultural, incluindo a proibição de eles se comunicarem em sua língua.
As arbitrariedades não pararam por aí. Seis anos depois, em 1972, o povo Krenak foi retirado à força de suas terras, demarcadas oficialmente desde dezembro de 1920, e levado para a Fazenda Guarani, situada no município de Carmésia, a 343 km de distância. O objetivo do deslocamento forçado era expulsar os Krenak de seu território para a instalação de empreendimentos econômicos e doação a fazendeiros. Todos os Krenak e todos os confinados no presídio foram removidos.
Segundo o procurador da República Edmundo Dias, “Uma das violações mais marcantes aos direitos indígenas no período ditatorial consistiu na sistemática remoção das etnias de seus territórios tradicionais. O próprio Estado, por meio do SPI e depois da FUNAI, participou ativamente dos processos de despossessão, quer negligenciando invasões às terras indígenas, quer promovendo o arrendamento das terras dos índios a fazendeiros e empresários e patrocinando transferências forçadas de povos indígenas dentro do território nacional”.
Destacando que “a perda do território tradicional teve impactos gravíssimos sobre os indígenas, colocando em risco a própria existência das etnias, diante da importância do território para a reprodução física e cultural das comunidades indígenas”, o MPF lembra que, em 1957, os mesmos atores que ganhariam protagonismo com a ascensão do regime militar, já haviam transferido os Krenak, compulsoriamente, para uma área onde hoje vivem os Maxakali, no nordeste do estado. Após dois anos nessa região, os Krenak conseguiram retornar a suas terras tradicionais e, conforme consta do requerimento entregue ao MJ, o “fizeram de forma épica, realizando a pé o trajeto entre os municípios de Santa Helena de Minas e Governador Valadares [distantes 334 k], numa viagem que teve duração média de três meses”.
Em 1972, eles até tentaram resistir à nova expulsão, mas foram violentamente reprimidos e torturados.
Ao chegarem na Fazenda Guarani, os Krenak tiveram que conviver com etnias rivais, poucas terras férteis, clima frio a que não estavam habituados, e a ausência do Rio Doce, que era o centro de suas atividades culturais.E lá também havia local destinado ao confinamento dos índios desviantes.
Por oito anos, os Krenak suportaram as péssimas condições de vida na Fazenda Guarani,até que o forte vínculo com seu território no rio Doce prevaleceu e eles começaram a fugir da fazenda e retornar às suas terras, a despeito do grande temor de serem recebidos com violência pelos fazendeiros e pelos agentes do Estado, conseguindo estabelecer-se em uma pequena área à margem esquerda do rio.
Em 1983, a Funai finalmente ajuizou uma ação ordinária de nulidade de títulos sobre os imóveis rurais localizados na Terra Krenak. Dez anos depois, em 1993, o STF julgou procedente a ação e anulou os títulos de propriedade. A homologação e demarcação do território foram efetivadas em 2001.
Reparação coletiva
Para o Ministério Público Federal, as graves violações praticadas contra povos indígenas durante o regime militar permaneceram, por muito tempo, invisíveis, o que fez com que a Justiça brasileira não levasse em consideração as especificidades dessas violações e as reparações necessárias.
A inadequação do sistema fica clara quando se percebe que as normas procedimentais da Comissão de Anistia não prevêem de forma expressa reparações de natureza coletiva, centrando-se apenas nas violações individuais.
Tanto assim é que, em setembro do ano passado, foram anistiados pela Comissão 14 indígenas da etnia Suruí do Pará (Aikewara), mas a reparação, naquele caso, se deu em caráter individual.
Ocorre que “as sociedades indígenas são, em grande parte, estruturadas muito mais em torno da coletividade do que do indivíduo, de forma que reparações monetárias individuais, além de serem incapazes de responder adequadamente a violações que provocaram a desestruturação social e cultural dos povos atingidos, podem não ser compatíveis com a cultura e as demandas das populações indígenas”, afirma o MPF.
Em uma iniciativa inédita no país, o MPF requer à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça a reparação coletiva em prol do Povo Indígena Krenak, “tendo em vista que os atos da ditadura provocaram sua desagregação social e cultural, colocando em risco, portanto, sua própria existência enquanto povo”.
Clique aqui para ter acesso ao conteúdo integral do requerimento entregue nesta terça-feira, 24, ao presidente da Comissão de Anistia, durante cerimônia realizada no local onde será erguido o Memorial da Anistia em Belo Horizonte.
Saiba mais
A Comissão de Anistia foi instalada pelo Ministério da Justiça no dia 28 de agosto de 2001. Criada pela Medida Provisória n.º 2.151, a comissão está analisando os pedidos de indenização formulados pelas pessoas que foram impedidas de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política desde 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988.
A Comissão da Anistia tem vínculo direto com o Gabinete do Ministro da Justiça, é composta por 24 conselheiros nomeados e presidida pelo professor Paulo Abrão Pires Júnior.
(Fonte: Ministério Público Federal em Minas Gerais)