Mais de 200 advogados falsos atuam em Minas Gerais

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A placa com os dizeres “Gazzinelli Advogados Associados”, na porta de uma casa do Bairro Barroca, na Região Oeste de BH, não deixa dúvidas de quais são os serviços oferecidos na edificação nem quem os chefia. Na recepção, depois de dar um cartão com o nome do patrão, Bruno Gazzinelli, onde consta mais uma vez o sobrenome ligado à função de exercício do direito, a atendente confirma: “o doutor Bruno Gazzinelli é o advogado-chefe deste escritório de advocacia. Está viajando, mas podemos marcar uma reunião com ele.”O problema é que o nome de Bruno Gazzinelli não consta nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil seção Minas Gerais (OAB-MG) como advogado aprovado no exame da ordem, ou seja, autorizado a exercer a profissão. O caso é apenas um entre mais de 200 suspeitos de exercício ilegal da profissão e denunciados pela Comissão de Prerrogativas da OAB-MG ao Ministério Público do Estado (MP) para que providências criminais sejam tomadas. Enquanto isso, continuam as denúncias de processos com ações anuladas e de clientes lesados, alguns até com dinheiro roubado por falsos profissionais.

Para se ter uma ideia, ano passado a OAB-MG enviou ao MP uma relação com 205 nomes de suspeitos de exercer ilegalmente a profissão de advogado. São estagiários, pessoas com o registro cassado, cancelado e até estudantes. Um ano antes, a OAB havia denunciado 101 na mesma situação. Mesmo tendo esse número dobrado, ainda não foram tomadas providências, como mostra a reportagem.

No caso de Bruno Gazzinelli, duas vezes denunciado pela ordem, a reportagem foi até o escritório situado no Barroca sem se identificar para marcar uma reunião. O casarão é espaçoso e o nome da empresa, estampado na placa e no tapete de boas-vindas, comprova quem é o dono. Atrás de um balcão, a atendente confirma que o suspeito é o “advogado-chefe do escritório”. Como ele não estava, a recepcionista perguntou qual serviço o repórter desejava. Ao saber que seria uma consulta de preços e condições para abrir um processo de despejo contra um inquilino, a recepcionista passou o caso para a secretária de Gazzinelli. “Tem de ser com ele. Só ele faz os contratos e acerta os honorários”, disse a secretária, mais uma vez revelando a prática de atribuições de advogados.

Pelos levantamentos da OAB-MG, por 11 anos o denunciado deu entrada e depois trancou matrículas em faculdades de direito para conseguir carteiras da ordem de estagiário, que permitem apenas acompanhar processos, mas não ter um escritório de advocacia ou contratar advogados, como tem sido feito. A carteirinha dele foi cassada e não pode mais ser renovada.

No edifício Arcângelo Maletta, no Centro, entre as dezenas de estabelecimentos e consultórios, funciona mais um escritório de advocacia capitaneado por um estagiário que é suspeito de assumir a função de advogado, inclusive contratando profissionais legais. Desta vez, para fazer uma consulta sobre custos e condições para um processo trabalhista, a reportagem soube logo na portaria, pelo porteiro do edifício, que o locatário da sala em questão era advogado. Na porta do estabelecimento não há identificação das atividades profissionais desempenhadas. E esse não é o único cuidado tomado para disfarçar os serviços prestados. A porta só é aberta se a pessoa disser o nome de quem indicou o falso advogado, não adiantando informar apenas que quer contratar o escritório.

Orientações jurídicas

Vencida essa parte, uma reunião foi marcada para a manhã seguinte. Ao lado do repórter um policial se sentou e foi o primeiro a ser atendido pelo falso advogado, homem de terno e sorridente, que o leva para sua sala. Através das paredes finas dava para ouvir os aconselhamentos jurídicos do estagiário, que era chamado de “doutor” pelo policial, homem de meia idade que tentava um benefício previdenciário. Vários documentos e testemunhos foram pedidos pelo suspeito, orientações que configuram a relação de advogado e cliente. O estagiário, em vez de atender a reportagem, ordenou que outro advogado fizesse o serviço. Este não hesitou em confirmar que o “doutor” era o “chefe do escritório de advocacia e locatário da sala”.

De acordo com a procuradora geral de prerrogativas da OAB-MG, Cintia Ribeiro de Freitas, os casos mostram que o exercício ilegal da profissão continua, apesar das denúncias que a entidade tem feito ao MP. “Essas práticas encontradas pela reportagem lesam quem deposita confiança num advogado para resolver suas necessidades. Os atos conduzidos por esses falsos profissionais são anuláveis. Temos casos de gente que assinou procuração e perdeu até R$ 50 mil. Mas a OAB-MG não pode fazer nada contra quem não é da ordem, só o MP, e não temos notícias de que algo tenha sido feito”, afirma. “Advogados que trabalham para estagiários e pessoas com OAB cancelada ou suspensa podem ser punidos com suspensão e até cancelamento da ordem”, alerta.

Procurado, o MP informou que só poderia comentar o assunto nesta segunda-feira. Bruno Gazzinelli afirma que não exerce a advocacia e que tem uma firma de consultoria para empresas, uma imobiliária e que emprega advogados. “Fui estagiário, mas minha OAB-MG foi cancelada”. Quanto à placa na entrada do escritório e ao cartão com a frase “Gazzinelli Advogados Associados”, disse que isso seria mudado para “Gazzinelli Consultoria”, que seria a razão social da empresa.

Conheça histórias de pessoas que foram enganadas por falsos advogados

Vítimas de pessoas que exercem o direito ilegalmente e que não podem ser fiscalizadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) amargam prejuízos e o sentimento de terem sido enganadas por quem aparentava ser profissional sério, atuando em escritórios de advocacia legalmente constituídos. Uma dessas pessoas, um publicitário de 51 anos que pediu para não ser identificado por ter receio de represálias, conta que o falso advogado parecia ser um profissional bem-sucedido, de indumentária impecável e cercado por vários companheiros de profissão. “Parecia que tinha acabado de sair do banho. Como todo estelionatário, a fala dele é mansa e faz você pensar que está tudo sob controle, até que você assina as procurações, autorizando advogados a cuidar dos seus interesses e seu dinheiro vai embora”, conta.

Denunciado pela OAB-MG por chefiar um escritório de advocacia sem ser advogado, Bruno Gazzinelli perdeu na Justiça um processo em que uma empresa o acusa de ter comunicado uma causa perdida, quando na verdade houve um acordo entre as partes, sendo que Gazzinelli, na época estagiário de direito, recebeu a quantia e não repassou ao cliente. “Ele inclusive assinou peças do processo como se fosse advogado. O acordo foi feito em 1998, mas meu cliente só descobriu o rombo em 2008, que hoje chega a R$ 17 mil”, informou o atual advogado do denunciante, Rodrigo Rezende e Santos. Gazzinelli nega tudo. “Nós prestávamos serviço para essa empresa. Quando assinei alguma coisa, foi como estagiário, mas junto com advogados, o que é permitido. Nesse caso o cliente tinha permitido que recolhêssemos o dinheiro a título de honorários deste e de outros serviços”, disse.

Contudo, a procuradora geral de prerrogativas da OAB-MG, Cintia Ribeiro de Freitas, afirma que advogados não podem trabalhar para estagiários, o que representa transgressão ao Código da OAB. “Os 205 nomes que passamos ao Ministério Público foram todos denunciados para a OAB por pessoas lesadas ou advogados que souberam dessa situação. Vamos iniciar uma campanha nos próximos dias para mostrar como conferir se o profissional é alguém regularmente inscrito na ordem”, disse.

Com atuação em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Eliane Maria Assunção Miranda responde, com outras 21 pessoas, por apropriação indébita previdenciária e crimes contra o patrimônio, na Justiça Federal. Ela foi alvo de operação desencadeada pela Polícia Federal em 2007 como suspeita de integrar quadrilha acusada de um rombo de mais de R$ 5 milhões do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Mas, além de burlar a lei para a obtenção de licenças e aposentadorias indevidas, Eliane se passou muitas vezes por advogada. Com escritório e tudo, o Semmbas Aposentadoria, ela prometia “cuidar” dos processos de trabalhadores junto ao INSS.

Ameaças e fraude

Uma de suas vítimas, um homem de 60 anos que trabalhou desde a adolescência no ramo da mineração, tentava se aposentar desde 1998. Ele conta que foi apresentado a Eliane naquele ano por um colega de trabalho. “Sempre pensei que ela fosse advogada”, afirma. Quando o benefício finalmente saiu, ano passado, ela requereu uma fatia de 40% do total. Uma amiga da família estranhou o valor do pagamento e o fato de a mulher dizer que havia ido a Brasília fazer a defesa do processo de aposentadoria.

Ao procurar o contato na página da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG), não encontrou qualquer menção a Eliane e, ao digitar seu nome no site de buscas, se deparou com uma reportagem do Estado de Minas sobre o envolvimento da falsa advogada com a quadrilha. “A Eliane começou a ligar até para minhas filhas e a enviar vários e-mails ameaçadores, dizendo que sabia onde eu morava e que iria buscar o dinheiro”, conta. Eliane dizia que, além de ir a Brasília, gastou dinheiro com viagens a outros estados, atrás de documentos de empresas onde o aposentado trabalhou.

Ele ligou para a Ouvidoria do INSS e foi informado de que advogados não fazem defesa em tribunais nesses casos. E que o INSS aconselha a não contratar os profissionais, justamente para evitar esse tipo de golpe. “Me senti enganado. Ela dizia ter tido muito trabalho com minha aposentadoria, mas, diante disso, passei a não acreditar em mais nada”, relata. Pelo contrato, o pagamento seria o primeiro salário da aposentadoria.

Numa ligação feita por outra pessoa a Eliane, ela explicou os detalhes de seu trabalho, mas ficou nervosa ao ser questionada sobre o processo na Justiça Federal. Informou que ainda é estudante de direito. Na conta dela, o aposentado depositou duas vezes o valor combinado e deixou a cargo da falsa advogada entrar na Justiça para requerer o restante. “Fiz também um boletim de ocorrência na Polícia Civil, com uma delegada que estava a par da ficha dela. Foi o meio que encontrei de me assegurar caso qualquer coisa ocorresse comigo ou com minha família”, disse.

O que diz a lei

Quem advoga sem ser inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil comete crime de exercício ilegal da profissão ou atividade, definido na Lei das Contravenções Penais. Pelo artigo 47 dessa legislação, pode ser punido com prisão simples de 15 dias a três meses ou multa, pena prevista para quem exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício. Já o estatuto da OAB define como infração disciplinar várias atitudes que advogados contratados por pessoas que têm escritórios, mas não estão inscritas na ordem, como “facilitar, por qualquer meio, o exercício da profissão aos não inscritos, proibidos ou impedidos, valer-se de agenciador de causas, mediante participação nos honorários a receber e assinar qualquer escrito destinado a processo judicial ou para fim extrajudicial que não tenha feito, ou em que não tenha colaborado. As sanções disciplinares consistem em censura, suspensão, exclusão e multa.

Como se proteger de falsos advogados

Advogado é apenas quem é aprovado no exame da OAB. Quem se forma em direito é bacharel e não pode advogar sem aprovação da entidade

Desconfie de honorários muito abaixo dos preços de mercado. Esse é um dos principais meios dos falsários conseguirem clientes

Consulte se o nome do advogado consta no site www.oabmg.org.br/consulta/default.aspx

A carteira de advogado é vermelha e tem chip de segurança. A de estagiário é azul, com chip e prazo de validade

Desconfie de advogados que anunciam seus serviços ou fazem uso de panfletos. Isso constitui infração ético-disciplinar e pode ser indicativo de um falso profissional

Cuidado com advogados que prometem resultados rápidos. A agilidade do processo não depende só do advogado, mas também da Justiça e seus trâmites

Advogados devem assinar um contrato com honorários claros e fornecer nota fiscal

(Fonte: OAB/MG e Estado de Minas)

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