Dona Lotinha e os dois filhos são os únicos no vilarejo de Conceição do Mato Dentro
Há, em meio às montanhas do município de Conceição do Mato Dentro, um vilarejo quase esquecido pelo tempo, que se torna encantado aos olhos de quem conhece. Mas, mesmo longe da “civilização”, a história ali não morre, e, de ano em ano, devotos das almas do Cemitério do Peixe retornam para celebrar o que há de mais rico ali: a tradição. Assim como a pacata e bucólica aldeia que ambienta o romance “Cem Anos de Solidão”, do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, o Peixe é uma espécie de Macondo mineira e abriga vasta genealogia de famílias que ali se formaram. A solidão, no entanto, não reina. Mesmo vivendo apenas com os dois filhos no local, dona Lotinha é conhecida em todos os povoados vizinhos e tem nas almas, nas águas e nos animais a companhia diária.
Carlota Brandão conta que local tem um segredo – Foto: Mariela Guimarães/O Tempo
Carlota Oliveira Brandão, 64, a dona Lotinha, é a força dessa resistência e tem orgulho de viver ali. “Fui nascida e criada nas terras do Peixe e, quando morrer, é ali no cemitério que quero ficar”. Foi no vilarejo, distrito de Conceição do Mato Dentro, onde ela nasceu, se casou, viu os sete filhos crescerem e ainda vive. Aos poucos, os familiares foram saindo de lá – uns para estudar, outros para trabalhar, e o marido, a vida levou. Mesmo assim, Lotinha permaneceu. Com linguajar peculiar, ela se descreve como a única “moradeira”. Os outros vão e voltam. Ela fica sempre.
O povoado sobrevive devido ao seu forte apelo religioso, marcado pelo Jubileu das Almas, celebração que acontece sempre em agosto. É durante a festa que as pessoas retornam para esse lugar e trazem novamente vida e agitação ao pacato templo de dona Lotinha. O ano todo, ela se prepara para receber os romeiros, que a tiram da rotina do campo e a levam para a cerimônia em homenagem aos que ali estão enterrados.
Dona Lotinha é quem cuida da igreja – Foto: Mariela Guimarães/O Tempo
Os dias de dona Lotinha não são muito diferentes uns dos outros. Ela se levanta bem cedinho, às vezes antes mesmo de o sol nascer, coa o café – sempre no pano – e o serve aos filhos. Olímpio Antônio Brandão, 27, sai cedo para trabalhar em uma fazenda vizinha e deixa a mãe e o irmão, José Aparecido de Oliveira, 29, no Peixe. Mas ele retorna à casa todos os dias para o almoço e para o café da tarde.
Enquanto o filho sai, a mãe e o irmão – que tem sequelas de um problema de saúde quando nasceu e até hoje requer atenção especial de dona Lotinha – terminam o serviço da casa. Cuidar das galinhas e dos oito cachorros da família é a primeira missão, e, ao longo do dia, a matriarca consegue fazer comida, arrumar a casa e circular por todo o vilarejo. “Ando isso tudo aqui e conheço cada pedaço.”
Recursos limitados
O lugar faz parte do distrito de Capitão Filizardo, que fica a cerca de 12 quilômetros do Peixe. Além da escola e de pequena vendinha, os recursos no distrito são limitados. Para fazer compras, ir ao médico e resolver a maioria das pendências burocráticas que a vida exige, a moradora ilustre do Peixe tem que ir à pequena Gouveia ou a Diamantina, cidades do Alto Jequitinhonha.
“Médico é uma coisa mais fácil, principalmente hoje em dia. Tem uma equipe que vem sempre a Capitão Filizardo, e conseguimos ser atendidos e receber medicamentos. Já as compras, eu prefiro fazer apenas uma vez por mês. Compro tudo o que preciso e não tenho que ficar saindo daqui (do Peixe)”, explica. Ela conta que, para as compras do mês, acorda antes de o sol raiar e anda por uma hora e meia até o ponto para embarcar para Gouveia. Na volta, ela consegue desembarcar mais perto de casa, e os filhos a esperam no ponto para ajudar a carregar as compras.
O resto é tudo plantado ou cultivado ali mesmo. Presença marcante, as galinhas já chegaram à casa das dezenas na casa de dona Lotinha. Atualmente, ela não trabalha fora e vive da pensão do marido e com a ajuda dos filhos. Mas, até um ano atrás, além de cuidar da casa e do vilarejo e de ajudar na igreja, ela também trabalhava em uma fazenda vizinha.
Segundo a idosa, há um segredo sobre o Peixe, nunca revelado, como ela prefere. “Há sensação boa aqui, e não é algo de material nem anda. Aqui não somos muito apegados a essas coisas”.
Local ainda abriga corpos de diversos moradores da região – Foto: Mariela Guimarães/O Tempo
(Fonte: Portal O Tempo Online)