Rosilene Ávila – Pedagogia da jurubeba

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Vou contar em breves palavras um fato que me veio à lembrança esta semana. Aos que me conhecem desde criança, será fácil identificar as personagens. Para todos, no entanto, proponho uma análise crítica e reflexiva do fato e do contexto.

Não sou uma pessoa muito apegada às lembranças do passado. Deve haver uma explicação psicanalítica para isso, mas algumas passagens da minha vida foram simplesmente apagadas. Tanto que sempre me perguntam: _ Você se lembra de fulano, daquele dia, naquele ano? Fico meio sem graça quando tenho que responder: Não estou me lembrando agora, é que ando meio esquecida! Como é que foi mesmo?

Sempre acontece, porém, de por um motivo banal, me vir à memória alguns fatos isolados. E quando me lembro de determinadas coisas, fico me questionando: _ Por que me lembrei disso agora? E geralmente chego a alguma explicação. Até então guardava tudo para mim. Com a oportunidade de dividir meus pensamentos com os leitores internautas, exponho a conclusão a que cheguei após analisar o fato que relato a seguir:

Minha mãe, já falecida, e eu, éramos moradoras do pacato distrito de São João da Chapada, pertencente ao município de Diamantina, Minas Gerais. Lá mesmo, onde a lua cheia é vista de tal maneira, que nunca mais vi em lugar algum. Historiadores dizem que é o ponto habitado mais alto do Brasil. Estar em São João é como estar mais próximo do céu, literal e metaforicamente falando.


(Foto: João Luiz Silva)

Pois bem, nessa época, década de 80, ainda era comum que as pessoas se visitassem, fossem ver os parentes e os amigos, para uma boa conversa, uma pequena ajuda na limpeza, para tomar um café com biscoito de goma… Os motivos da minha mãe, eu não sei. Mas os meus motivos para fazer as visitas que eu tanto gostava, eram com certeza, o café e o biscoito de goma. Neste caso, estou falando da casa de Mundica, como carinhosamente a chamamos ainda hoje. Mundica é uma parente próxima, dessas que se a gente tivesse a possibilidade de escolher, escolheríamos novamente para fazer parte da família. Dedicada, carinhosa, simples, pura de alma e coração. Bom, era só saber que Mundica havia chegado do Guarda-mor, povoado na zona rural de São João, que minha mãe e eu estávamos lá, batendo ponto na casa de Mundica. Minha mãe ia para uma prosa, um desabafo e eu, que gosto demais da conta de Mundica, honestamente já ia pensando no café com biscoito de goma.

Sempre eram visitas agradáveis. Lembro-me com carinho das falas de Mundica: “leva uma balinha pra menina, Irene”, ou então “essa menina gosta mesmo de café, né Irene?”. Estava tudo muito bom até que chegava a hora desagradável. Aquela hora que foi o pivô da minha vontade de contar este caso. A hora do jurubeba. Mundica, sempre que ia ao Guarda-mor, trazia de lá, orgulhosa, a sua fabricação – vinho de jurubeba, sem álcool.

Para quem não conhece, a jurubeba é uma planta medicinal, tem gosto amargo e (e põe amargo nisso). Pode chegar a 3 metros de altura, possui folhas lisas pequenos frutos amarelos e flores da cor lilás ou brancas. Então, Mundica chegava toda feliz da vida com os copos de jurubeba. Eu disse “os copos”, no plural, porque tinha um pra mim também. Eu olhava para minha mãe e já ganhava um cutucão. Mãe tem dessas coisas, né? Parece que prevê quando o filho vai dizer algo que não é conveniente. Minha mãe era mestre nisso. Depois do cutucão, eu logo entendia que tinha que aceitar a oferta tão carinhosa. Não era pra todo mundo que Mundica oferecia a “preciosidade” Ela ia logo dizendo: “Dessa vez veio pouco, Irene, mas procê não falta não!” Eu pegava meu copinho, dava umas bebiricadas e o vinho descia difícil! Quando não tava agüentando mais, disfarçava, ia lá fora, jogava um pouquinho no quintal. Devolvia o copo vazio e agradecia, ao que Mundica logo dizia: _ Que gracinha, gente, ela gosta mesmo! Difícil criança gostar de jurubeba. Quer mais um pouquinho? E eu: _ Não, brigada. Já ta bom!

E assim, algum tempo depois íamos embora. Mundica ficava contente com a visita, minha mãe não tocava no assunto da jurubeba e eu tampouco me lembrava do cutucão.

Refletindo sobre essa lembrança, comecei a avaliar-me como mãe. A minha, não era pedagoga e pouco estudo tinha. No entanto, no curto tempo em que convivemos (oito anos) deixou-me ensinamentos preciosos.

Percebemos atualmente algumas diferenças que colocam na berlinda alguns valores importantes de nossa geração. Quando, por exemplo, oferecem algo para uma criança e ela prontamente diz “Eca, eu não gosto disso! Isso é muito ruim! “Dizem alguns, estudiosos e leigos, que a criança “tem personalidade” estando apta expressar seus gostos, suas preferências. Avaliam muitas vezes a atitude como uma virtude. Observando os grupos ao nosso redor, nós, enquanto pais, mães, educadores, avós, tios, tias… devemos estar sempre atentos e termos muito cuidado ao classificarmos como “personalidade” o que a própria sociedade posteriormente irá cobrar e rotular como “falta de educação”. É muito comum, hoje em dia, as crianças escolherem o que comer, o que vestir, aonde ir, a quem respeitar… Será que estamos preparando os futuros adultos para as jurubebas da vida? Eu aprendi com minha mãe, e sei que muitos da minha época aprenderam também que um pouco de amargo na vida, não mata ninguém, mas ensina muita coisa. É um ensinamento que vale a pena relembrar.

Ao me dar cutucões por causa da jurubeba, minha mãe ensinou-me a respeitar e ser agradável com as pessoas, principalmente os mais velhos; a ter bons modos, principalmente se estou na casa alheia, e o mais importante de tudo, ensinou-me que na vida existem biscoitos de goma e vinhos de jurubeba. Temos que aprender a viver e conviver bem com uns e com outros.


(Foto: João Luiz Silva)


(Foto: João Luiz Silva)


(Foto: João Luiz Silva)

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