Rosilene Ávila – O valor do velho!

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Tenho refletido bastante sobre a onda do “novo” que se instalou em nossas culturas super modernas. Muito se fala em renovar, inovar, criar… Nada contra. Eu mesmo uso sempre estes termos. O que tem me incomodado é o fato de que constantemente, essas palavras vem carregadas de uma certa arrogância e prepotência. Como se tudo que foi feito no passado não tivesse valor. Vemos isso mais claramente entre jovens (a geração do futuro). Não gosto de ser generalista, mas o fato é que a cada dia que passa nos distanciamos mais de nossa essência, de nossa cultura, valorizamos em demasia as novidades e nos esquecemos do caminho trilhado até chegarmos aqui.

Entendo que estamos passando por mudanças significativas no modo de viver e que com o clima político de liberdade, propício às transformações da cultura, os povos tendem a evoluir mais rapidamente. Isso é indiscutivelmente necessário e eu amo ser livre pra pensar e expressar meus pensamentos.

Pretendo neste texto ater-me à nossa realidade mineira interiorana, para propor uma reflexão sobre a importância da cultura na construção da nossa identidade, da nossa individualidade, do nosso modo de ser. Neste sentido vamos partir da família, suas tradições e seus valores. Muita coisa mudou. Até aí tudo bem, é normal que uma cultura seja incorporada por outra, um costume modificado por outro, um valor ou princípio repensado e substituído por outro. Sem nostalgia ou regressionismo, vamos pensar praticando.

Há algum tempo atrás, “outro dia mesmo”, a família seguia algumas tradições que serviam de base para alguns princípios e valores. E hoje? Como ensinar valores, se as tradições não são levadas em consideração? Cada um vai decidir de acordo com a sua capacidade de entender o mundo? Quais princípios irão sobreviver à era capitalista, competidora, globalizada e mercantilizada?

Dia desses era assim: Ninguém saía ou entrava em casa sem dizer: “bença pai, bença mãe, bença vó!”… Fora as questões religiosas, pedir a benção era sinal de respeito, de educação, de valorização dos mais velhos e até de comunicação. Podia não haver diálogo, mas ninguém ia dormir sem pedir a benção.

Lembro que lá em casa, esse costume não era limitado à família. Minha mãe me obrigava a pedir a bênção a torto e a direito. Apontava D. Felisbina lá na rua, minha mãe já dizia: _Toma bença menina! Tem educação não? Acho que é por isso que eu sou tão “abençoada!”.

Este costume está quase extinto nas famílias. São raros os heróis que conseguem mantê-lo. O que perdemos com isso? Na verdade, podemos pensar como “o que deixamos de ganhar?” Os filhos dizem: “E aí véi”? Não há obrigatoriedade, nem disciplina nesse cumprimento! Alguns, quase sempre bem intencionados sentem-se amigos de seus pais. Quando querem, cumprimentam, quando estão de “mal humor”, viram as costas e saem. Não há aprendizado, não há transmissão de valores, não há referências. Quando esses filhos tiverem filhos, o que vão ensinar? Os pais passam a ser “uma pessoa qualquer”. Tenho medo disso, tenho medo de que no futuro, pais só sirvam para gerar!

Com relação às tradições familiares, de acordo com o Dr. Phil McGraw, a importância destas atividades para a família reside no fato das mesmas servirem “(…) de âncoras psicológicas e comportamentais para os seus valores e para as suas crenças, (…) oferecem à sua família uma sensação de estabilidade e de identidade, (…) reforçam o patrimônio familiar, (…) dão sentido à sua família e (…) continuam a criar ritmo na sua vida familiar”.

Dia desses havia comemorações e celebrações religiosas em que toda a comunidade participava inclusive jovens e crianças. Na minha comunidade, a tradição católica da semana santa era uma coisa mágica, fantástica, inesquecível. Sempre digo que jamais, em nenhum lugar presenciei celebrações da semana santa como na minha infância. Começava na quarta-feira com a procissão do encontro. A semana santa era respeitada com silêncio e oração. Hoje penso nisso com muito orgulho, pois entendo que partindo de uma comunidade que se afirma cristã, que professa a fé em Jesus Cristo, na sua paixão e ressurreição, dedica a vida a Ele, nada mais honesto e coerente que ao relembrar o seu sofrimento, a sua morte, que o façamos de maneira respeitosa como Ele merece. Então, a procissão do Encontro, onde o Padre fazia uma pregação, a qual chamávamos de “sermão do encontro” era carregada de emoção. Eu, ainda criança, chorava rios ao imaginar o sofrimento de Maria encontrando seu filho naquele estado de sofrimento. Assim como eu, muitos presentes chegavam às lágrimas. Na sexta-feira santa, durante todo o dia havia um clima de respeito no ar. Comércios não abriam, não podíamos ouvir música, nem gritar, nem brigar… Enquanto isso na igreja era preparado o cenário. Por várias vezes já tentei entender aquela celebração única que só existia em São João da Chapada. Há pouco tempo resolvi que ia me lembrar desta cena como a encenação do velório de Jesus. Na igreja lotada, uma cortina preta separava o altar e aguçava a curiosidade da comunidade. A celebração se repetia todos os anos, mas a emoção era sempre nova. Lá fora, os atores se preparavam para representar o seu papel. Eram os apóstolos, a samaritana, Maria, Marta, e muitos outros personagens que fizeram parte da história de Jesus. Eu sempre quis me vestir de Maria Madalena, pois sempre eram mulheres com os cabelos bem compridos. Muitas deixavam o cabelo crescer para este fim. Pois bem, ao iniciar a celebração, os personagens eram chamados e percorriam toda a igreja até chegarem ao altar, onde entravam e ficavam lá escondidos pela cortina. A cada personagem, correspondia um pequeno texto sobre sua vida e participação na história de Cristo. Após todos terem entrado, o padre fazia a pregação e em determinado momento, de acordo com a deixa, a cortina se abria ao som das lanças dos guardas romanos batendo no chão e das matracas, que preenchiam o silêncio da noite. Atrás da cortina um cenário maravilhoso com fundos preto e roxo, plantas espalhadas, ervas aromáticas típicas da época, o esquife do Senhor morto, ladeado por todos os personagens que entraram. Imagem linda! Vinha então a procissão do enterro, ao som dos dobrados fúnebres maravilhosamente entoados pela banda Santa Cecília, e do beú (Oh vos omnes), cantado pela Verônica do ano. Acompanhavam também o cortejo, os guardas romanos e os matraqueiros. O sábado de aleluia com a vigília pascal iniciava um tempo de alegria; e por fim, o domingo de páscoa. O domingo da ressurreição era naturalmente alegre. Alguns dias antes pessoas da comunidade saiam em busca de areias coloridas para enfeitar as ruas. Logo de madrugada no domingo, já havia muita gente na rua, dando formas aos famosos “tapetes” para a passagem do Deus vivo. As janelas eram enfeitadas com as melhores colchas, vasos de flores e folhagens. E era um orgulho enfeitar a casa. Era uma alegria que muitos podem pensar que eu sentia porque era criança, mas era geral, todos sentiam e demonstravam esse orgulho em participar. Se houvesse facebook e máquina fotográfica digital naquela época, ia ser uma sequência de flashs para poder exibir as obras de arte para o mundo. Havia os desentendimentos, claro, mas sempre se solucionavam e as ruas ficavam maravilhosas. Após os festejos religiosos, havia a queima do Judas, o pau de sebo… Ah! Vale lembrar que ovos de chocolate nesta época não eram obrigatórios.

Esta é mais uma tradição que anda capengando. Por exemplo, a semana santa para os católicos já não tem o mesmo sentido. Muitos (católicos, cristãos) só sabem que é feriado e isso é o que importa. Também não veem nenhum problema em beber, se divertir e até mesmo “comemorar” a sexta-feira santa, quando celebramos a paixão e morte de Jesus. Não estou julgando, como certo ou errado e sim retratando uma realidade que pessoalmente considero incoerente para aqueles que professam a fé católica. É claro que argumentos e justificativas não faltam. Cada um tem a sua e politicamente falando, ainda bem que vivemos em uma democracia.

Seguindo o raciocínio, as tradições religiosas trazem consigo valores morais e espirituais que vão muito além da religião em si. Seja qual for a religião, é muito importante o fato de existir uma referência, um norte, uma filosofia que leve em consideração o ser humano, sua relação com o outro, com a comunidade em que vive, que possa discernir e separar o ser humano das coisas materiais. Vale lembrar que nascemos sós e nus e é assim mesmo que partiremos. Preocupo-me com a crescente onda de ateísmo entre os jovens, bem como me incomoda cada vez mais, a indiferença de muitos com relação aos assuntos espirituais.

Seria possível elencar aqui uma infinidade de tradições e costumes que se perderam em função da evolução da sociedade e que continuarão se perdendo pelo decorrer dos tempos. O fator que chega a ser desesperador é perceber que nessa transição que estamos vivenciando, valores tão importantes para nós também estão sendo sepultados, e de maneira abrupta. Alguns, no entanto, ainda podem ser salvos.

Fotos da Semana Santa de 1982 publicadas por Toninho Cunha no perfil do facebook – grupo São João da Chapada

Fotos da Semana Santa de 2013 publicadas por João Luiz no perfil do facebook – grupo São João da Chapada

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