Homem que vive isolado no mato há 37 anos tem vida transformada

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Até cinco anos atrás, a história de vida do senhor Caçimiro Alves de Sousa, hoje com 76 anos, era uma espécie de lenda para os moradores do pequeno município de Santa Cruz de Salinas, no Norte de Minas. Àquela época, havia 32 anos que o idoso vivia sozinho e isolado da cidade em um pedaço de terra de difícil acesso situado na localidade Fazenda Brejinho, distante cerca de sete quilômetros da comunidade. Havia, ainda, 15 anos que ele não colocava os pés na estrada para ir à cidade.

Além do inusitado isolamento mantido por Caçimiro há mais de três décadas, o que chamava a atenção dos moradores era o fato de que o idoso vivia sem qualquer fonte de renda em uma casa extremamente precária, uma espécie de oca, de um só cômodo, construída por ele mesmo com barro e areia – estrutura que pouquíssimas pessoas chegaram a ver, devido à dificuldade de acesso. O hábito de vida do morador mantinha desperta a curiosidade da população, que passou a se referir a ele como “homem das cavernas”.

A história de Caçimiro, por tanto tempo viva e, paradoxalmente, desconhecida por quase toda a população local, começou a ganhar páginas novas a partir do dia 27 de maio de 2015, quando o projeto Ministério Público Itinerante desembarcou em Santa Cruz de Salinas. A iniciativa, criada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) há 10 anos, tem como objetivo principal atender comunidades que vivem em municípios mineiros de baixo índice de desenvolvimento humano e estão distantes dos órgãos públicos garantidores dos direitos individuais e coletivos. Por meio de parcerias firmadas com prefeituras e outros órgãos do sistema de Justiça, tendas de serviços são montadas em uma praça da cidade, a fim de oferecer aos moradores atendimentos nas mais diversas áreas do direito, como saúde, família, idoso, pessoa com deficiência, criança e adolescente, previdência social, entre outras.

Foi exatamente durante essa ação do MPMG em Santa Cruz de Salinas que os irmãos Arlando Manoel Marcelino e José Eduardo Manoel Marcelino, conhecidos de Caçimiro, resolveram conversar com os promotores de Justiça que participavam do projeto para contar a eles sobre a situação de vida do idoso, na esperança de que algum direito pudesse ser garantido ao morador. Enquanto o promotor Jean Ernane Mendes da Silva, de Salinas, município vizinho, cumpria os atendimentos na praça, o então coordenador de Inclusão e Mobilização Sociais do MPMG, promotor de Justiça Paulo César Vicente de Lima, e o coordenador estadual de Defesa do Direito de Família, das Pessoas com Deficiência e dos Idosos, procurador de Justiça Bertoldo Mateus de Oliveira Filho, foram até a moradia de Caçimiro, levados por Arlando, José Eduardo e Genilson da Costa Rocha, motorista da Prefeitura.

Além dos sete quilômetros de estrada de chão, o grupo precisou percorrer outros 2,5 quilômetros a pé, em terreno arenoso e íngreme, para chegar até o local. O impacto causado pela realidade de vida do idoso e o atendimento feito pelos promotores de Justiça foram contados em reportagem publicada pela Diretoria de Imprensa no portal do MPMG, em 2 de junho de 2015, há exatamente cinco anos.

Vulnerabilidade extrema

Por todos esses anos, Caçimiro viveu sem acesso a serviços básicos, como água tratada, saneamento e energia elétrica, além de não manter qualquer contato com dinheiro. A aversão ao capital parece ter decorrido de experiências traumáticas vividas por ele como empregado em uma fábrica localizada em Suzano, no estado de São Paulo, antes de retornar definitivamente para Santa Cruz de Salinas.

Até cerca de 20 anos atrás, Caçimiro garantia sua sobrevivência por meio do escambo. Percorria a pé todo o trajeto da sua casa até a cidade, levando nas costas frutas que plantava e a lenha que cortava, para trocá-los por itens de primeira necessidade. Porém, com o desenvolvimento da cidade e o consequente fim das permutas, o morador acabou por recolher-se ao que tinha – a terra –, vivendo em um mundo próprio e lutando, todos os dias, contra o escasseamento dos recursos necessários à sua sobrevivência.

A água que, por todo esse tempo, ele usou para beber e para tomar banho é a da chuva, acumulada em piscinas naturais abertas por ele na terra. Já a alimentação vinha das frutas que plantava e, nos últimos anos, também da generosidade de alguns moradores da cidade que, compadecidos pela situação, passaram a, eventualmente, levar para ele alimentos como mortadela, sardinha, toucinho e carne seca. Também o município de Santa Cruz de Salinas, por meio da Secretaria de Assistência Social, passou a auxiliar o idoso com a doação de cestas básicas., após ser acionado por conhecidos de Caçimiro.

Conforme Bertoldo Mateus, o quadro visto pela equipe do MP Itinerante no atendimento ao idoso impactou a todos. “Existia uma situação de extrema vulnerabilidade de uma pessoa que, embora vivendo perto da cidade, estava distante de todos e de tudo, sem acesso ao mínimo existencial”.

O procurador de Justiça acredita que a realização do projeto MP Itinerante na cidade gerou uma espécie de toque nos irmãos Arlando e José Eduardo, que decidiram relatar o caso aos promotores. A partir de então, começou a girar uma engrenagem que mudaria de forma significativa a vida do idoso.

O trabalho pela dignidade

Após a visita a Caçimiro, os promotores de Justiça envolvidos no caso começaram a trabalhar para oferecer ao idoso uma vida mais digna, cuidando, contudo, para não violar sua autonomia e seus hábitos de vida. O primeiro passo foi resgatar a documentação do atendido, uma vez que ele não guardava qualquer documento, e os registros civis seriam necessários para garantir a ele o pagamento mensal de um salário-mínimo, por meio do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC) – valor destinado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a idosos e deficientes que não possam se manter e não possam ser mantidos por suas famílias.

Foi preciso uma mobilização conjunta do MPMG e da Prefeitura de Santa Cruz de Salinas para localizar a certidão de registro civil do idoso e para confeccionar os documentos necessários. “A busca da certidão levou mais tempo do que o esperado, porque o nome dele não é grafado com ‘ss’, como supunhamos, mas com ‘cê-cedilha’”, contou a promotora de Justiça Liliane Kissila Avelar Lessa.

Liliane começou a atuar na Promotoria de Justiça de Salinas pouco tempo depois do atendimento a Caçimiro pelo MP Itinerante e imediatamente abraçou o caso, mantendo comunicação direta e constante com a Secretaria de Assistência Social do município. Como o idoso não tinha contato com dinheiro e sabendo que Caçimiro era amigo de uma mulher da comunidade que o ajudava com doações, a promotora decidiu ajuizar uma ação de interdição parcial do atendido, para que essa moradora, chamada Maria dos Anjos, o ajudasse na gestão do benefício, fazendo valer as vontades dele. “Sempre tivemos todo o cuidado para que o senhor Caçimiro não se sentisse invadido. Foi uma situação difícil, que não está nos livros de direito. As condições para a nossa atuação foram surgindo com o tempo”, explica.

A interdição do idoso foi decretada pela Justiça em março do ano passado, e, na sequência, o INSS começou a pagar a ele o benefício devido, com um valor retroativo acumulado de quase R$10mil. Antes disso, em 2018, o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) já havia obtido para o morador o pagamento de bolsa-família no valor de R$ 90, quantia que foi suspensa após a aquisição do BPC.

Casa nova

Com o pagamento retroativo do BPC, os integrantes da rede de apoio a Caçimiro propuseram a ele a construção de uma casa digna, no mesmo terreno, o que foi aceito pelo idoso, com a condição de que participasse de toda a obra. “Construímos a casa em 18 dias, com a ajuda de 35 pessoas da comunidade, que doaram a mão de obra e também recursos para complementar os gastos”, conta, com alegria, Vilmar Manoel Marcelino, responsável pela elaboração de um livro de ata da edificação. “Do início ao final, tudo foi feito do jeito dele”, salienta Maria dos Anjos.

A nova moradia de Caçimiro, formada por dois cômodos, um banheiro e uma área com fogão a lenha, foi concluída no mês passado, para a felicidade de todos os envolvidos. Conforme Maria dos Anjos, havia, por parte dos amigos, o receio de que o idoso não se mudasse para a casa nova. Porém, antes mesmo de a obra ser finalizada, Caçimiro já estava no novo espaço. “Estamos muito felizes porque agora ele está mais feliz e mais socializado. Teve um dia que ele até se emocionou com a gente lá. Mas se perguntarmos se ele está feliz, ele fala que está com sorte”, conta a curadora.

Segundo Vilmar, o amigo mudou muito depois que passou a viver na nova moradia. “Acho que ele está muito diferente. Na casinha antiga, não deixava ninguém entrar, acho que por vergonha. Agora está feliz demais, recebendo as pessoas. Faz até café para as visitas”.

A nova casa de Caçimiro foi construída mais perto da estrada, o que facilitou a entrega dos alimentos e a visita dos amigos, comenta Kênnia Daniela Mendes, assistente social do Cras. “Antes, era preciso andar muito a pé para chegarmos até ele. Hoje, o carro vai na porta. O caminhão-pipa da prefeitura, que tem levado água potável para ele, também consegue chegar até lá”, comemora.

Mas os amigos de Caçimiro ainda querem fazer mais por ele, embora a limitação de recursos represente um impedimento para isso. “O Caçimiro vive sem energia elétrica, sem geladeira. Além de a energia não chegar até a casa dele, ele tem medo dos fios, da tensão. Mas sempre diz que gostaria de ter água fria para tomar, o que a gente tenta resolver levando gelo quando vai lá. Estamos pensando na possibilidade de colocar uma placa de energia solar na casa, mas isso é muito caro. Então, por enquanto é só sonho”, lamenta Maria.

Vilmar também sonha em realizar outro grande desejo do amigo, que é ter uma sanfona. “Ele deseja muito ter uma. Todo ano, faz um encontro de São João e reúne as pessoas que vão visitá-lo em torno da fogueira. Dizem que quando ele era mais novo, tocava muito forró para o povo dançar na Folia de Reis”. Para matar a saudade que o idoso tem do instrumento, Vilmar pegou uma sanfona emprestada com um conhecido certo dia e levou para Caçimiro passar o dia. “Foi uma alegria. O difícil foi levar embora, viu!”, conta. “Espero muito que ele possa ter uma um dia”, projeta o amigo.

Os cuidados de Maria dos Anjos

A curadora de Caçimiro, Maria dos Anjos Mendes, conheceu o idoso há nove anos, quando ela se mudou de São Paulo para Santa Cruz de Salinas. A mulher conta que soube da história do morador logo que chegou na cidade e pediu ao cunhado para acompanhá-la até a casa dele, para conhecê-lo. A situação de Caçimiro sensibilizou profundamente Maria, que vive com o marido e possui três filhos adultos em São Paulo. “Depois disso, eu nunca mais deixei de ir lá ajudá-lo”, conta. Aos poucos, a mulher foi estreitando os laços de afeto com Caçimiro e hoje tem por ele um amor de filha. “Acho que não fiz nada tão bem na minha vida como cuidar dele. Não há nada que me faça mais feliz”, afirma.

É Maria quem manda as refeições para Caçimiro, algumas vezes através de Vilmar, quando não pode ir até lá. É ela quem providencia tudo o que o idoso precisa. Foi ela quem acompanhou todo o processo de construção da casa, quem comprou a mobília e é também quem vai, uma vez por semana, à casa do idoso fazer faxina e lavar as roupas. É também quem está mais habituada com os hábitos peculiares do amigo, como o uso de roupas de cores específicas e de um calendário próprio. “Caçimiro é cheio dos hábitos, tem muita coisa do jeito dele. Só usa calça branca e blusa verde ou cor de abóbora, como ele fala. Diz que são as cores do sinal. Como ele não gosta dos números ímpares, ele tem um calendário próprio, só com os meses pares. Então, está sempre na nossa frente”, diverte-se.

A curadora se impressiona, todos os dias, com a disposição do idoso para o trabalho e com a força que ele possui, mesmo tendo vivido por tanto tempo em situação de miserabilidade. “É uma pessoa que não vai ao médico, não aceita que se meça a pressão, nem remédio, nem uma pomadinha. E mesmo assim tem a força de um trator”.

Para Maria, se não fosse o MPMG e a Assistência Social do município, a vida do idoso não teria se transformado. “Acho que ele não teria conseguido nada. Não sei mesmo como sobrevivia antes. Acho que foi Deus, viu!”.

“Não podemos normalizar o absurdo”

O promotor de Justiça Paulo César e o procurador Bertoldo Mateus ficaram muito felizes ao receberem da promotora Liliane a notícia sobre a construção da casa de Caçimiro. “O Ministério Público é um só, a soma dos esforços de várias pessoas. Ver esse corpo funcionando tão bem e envolvendo a comunidade é motivo de muito orgulho”, afirma Paulo César.

O promotor recorda que depois que voltou do MP Itinerante para Belo Horizonte ainda ficou por um mês com a história de Caçimiro na cabeça. Para ele, o caso reforça a importância da aproximação dos promotores de Justiça com a sociedade. “Temos muitos outros Caçimiros por aí, em condições de extrema vulnerabilidade social, em situações inaceitáveis. Não podemos normalizar o absurdo e a indignidade. Esse caso nos mostrou, com clareza, como é importante que os promotores saiam do gabinete, se aproximem da comunidade, para serem, de fato, agentes de transformação social. Se a gente não decide ir a campo, ver de perto a situação, nada muda”.

Bertoldo Mateus ressalta também que as instituições são feitas de pessoas e que estas precisam estar imbuídas do desejo de ajudar e de transformar. “Foi uma engrenagem que começou a rodar a partir de um impulso e que transformou não só a vida do Caçimiro, mas também da comunidade e de todos os outros atores que se envolveram no caso dele”, avalia.

O procurador recorda, ainda, que líderes inspiradores da sociedade, como Martin Luther King, Gandhi, Nelson Mandela e Madre Tereza, já ensinavam que, quando se modifica a vida de uma pessoa, o mundo está sendo modificado para melhor. “A gente se emociona com a dignidade que Caçimiro adquiriu e se alegra demais sabendo que alguma coisa se transformou para o bem”.

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