Ação pede que o Estado brasileiro seja responsabilizado por tortura contra índios Krenak

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O Ministério Público Federal em Minas Gerais (MPF/MG) ajuizou ação civil pública, com pedido de antecipação de tutela, para que o Estado brasileiro reconheça as graves violações de direito cometidas contra o povo indígena Krenak durante a ditadura militar, adotando medidas de reparação em favor de sua cultura.

Na ação, são narrados três episódios principais: a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), a instalação de um presídio chamado de “Reformatório Krenak”, e o deslocamento forçado para a fazenda Guarani, no município de Carmésia/MG, que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas.

São réus na ação a União, o Estado de Minas Gerais, a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Fundação Rural Mineira (Ruralminas) e o oficial militar reformado da Polícia Militar de Minas Gerais, Manoel dos Santos Pinheiro, que, na época dos fatos, detinha a patente de capitão da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG).

O MPF relata em detalhes o ambiente de exceção, trabalhos forçados, tortura, remoção compulsória e intensa desagregação social impostos ao povo Krenak quando da implantação do reformatório nas terras da etnia, situadas à margem esquerda do rio Doce, no município de Resplendor, região leste de Minas Gerais.

Para o procurador regional dos Direitos do Cidadão em Minas Gerais, Edmundo Antonio Dias, que integra o Grupo de Trabalho Violações dos Direitos dos Povos Indígenas e Regime Militar, da 6ª Câmara do MPF, “o reformatório era um presídio sem previsão legal, destinado a confinar indígenas em razão de condutas valoradas segundo critérios inteiramente subjetivos. Ali funcionou uma verdadeira polícia de costumes. As condutas em geral sequer eram previstas pela legislação penal e os índios não eram submetidos a julgamento. Os índios não podiam viver sua própria cultura, praticar seus rituais, nem mesmo conversar na língua materna. Além disso, o episódio do deslocamento forçado dos Krenak para a Fazenda Guarani evidencia a intensificação, durante o regime militar, do processo de desterritorialização desde sempre imposto aos povos indígenas no país.”

Em março, o MPF já havia apresentado à Comissão de Anistia um requerimento de anistia política ao povo indígena Krenak, conforme prevê o artigo 2º da Lei 10.559/2002, que ainda não foi apreciado.

Índios Krenak foram torturados durante a ditadura militar – Foto: Divulgação / MPF

Violações

Em 1969, foi criada a Guarda Rural Indígena (GRIN), um grupamento composto por indígenas de várias etnias, cujo comando, em Minas Gerais, foi delegado à Polícia Militar de Minas Gerais.

A solenidade de formatura da 1ª turma da GRIN ocorreu na presença do então governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, do seu secretário estadual de Educação, José Maria Alkmin – que fora vice-presidente da República entre 1964 e 1967 – e de outras altas autoridades federais. Durante o desfile, foi exibido um índio dependurado em um pau de arara.

A cena, que foi filmada, é a única registrada no Brasil que mostra, em um evento oficial, um ato de tortura.

Para o Reformatório Krenak, foram enviados indígenas de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país.

No comando do Reformatório Krenak estava Manoel dos Santos Pinheiro, que na época dos fatos tinha a patente de capitão e havia sido nomeado, por meio da Portaria n° 110/68, do presidente da Funai, para chefiar a Ajudância Minas-Bahia. Nesta condição, ele administrou o reformatório e a ocupação militar das terras Krenak, sendo também o responsável pela remoção compulsória, em 1972, dos indígenas para a fazenda Guarani.

No reformatório, os indígenas eram mantidos presos por diversos motivos, como ingestão de bebidas alcoólicas, ou simplesmente por terem saído da reserva sem autorização. No local, havia uma espécie de solitária, que os índios denominavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e noite como forma de punição.

Em seu depoimento prestado ao MPF, em maio de 2014, o indígena Manelão Pankararu, que foi trazido de Pernambuco para ficar detido no reformatório, conta que os índios eram levados para essa pequena cela onde eram submetidos a tortura: “Era uma cadeia grande. Tinha muitas celas, e cada cela tinha quatro camas. Era igual hospital. Havia também uma cela que era conhecida como “cubículo”, que era onde eles pegavam os índios e metiam o cacete, eu escutava os índios gritando. Era ali que o índio tomava couro (…) no cubículo havia um pau de arara e também o “cachorro quente”, que era um aparelho que ficava jogando água do teto o tempo inteiro e o índio ficava dois dias numa cela molhada. Alguns índios iam para o pau de arara e para o“cachorro quente” por qualquer motivo, sempre que fazia alguma coisa errada”, relatou o indígena.

O MPF, entre os meses de maio e agosto de 2014, esteve nas terra indígenas dos Krenak e dos Maxakali e tomou depoimentos que confirmaram que também crianças, mulheres e idosos eram vítimas dos atos de arbítrio, além de serem obrigados a executar tarefas para os policiais, sendo castigados quando não as realizassem.

Os indígenas ouvidos também relataram abusos de natureza sexual cometidos contra as mulheres Krenak pelos policiais militares que faziam a guarda do reformatório.

Exílio

Em 1972, o povo Krenak foi retirado à força de suas terras e levado para a Fazenda Guarani, situada no município de Carmésia, a 343 km de distância. O objetivo real do deslocamento forçado foi o de liberar as terras dos Krenak para fazendeiros que, no anterior, haviam perdido uma ação de reintegração de posse ajuizada para garantir os direitos dos Krenak. “Apesar de a ação ter sido decidida favoravelmente aos Krenak, foi acertada pelos réus a transferência dos indígenas para a Fazenda Guarani, deixando seu território aberto para os posseiros que haviam perdido a ação judicial”, observa Edmundo Antonio Dias.

Os Krenak referem-se ao episódio do exílio com profundo sofrimento, devido à distância do rio Doce, que era o centro de sua vida cultural e espiritual. Por oito anos, eles suportaram as péssimas condições de vida na Fazenda Guarani, que funcionou como uma continuação do Reformatório Krenak.

Somente em 1983, a Funai ajuizou uma ação ordinária de nulidade dos títulos concedidos pelo Estado de Minas Gerais e pela Ruralminas aos fazendeiros. Dez anos depois, em 1993, o STF julgou procedente a ação e declarou a nulidade dos títulos de propriedade.

Danos psicológicos

Para comprovar a gravidade dos impactos psicossociais resultantes da violência estatal sofrida pelos Krenak, o MPF solicitou um parecer ao psicólogo Bruno Simões Gonçalves, especialista em populações tradicionais. O relatório destaca que os atos de violência perpetrados pelos réus contra os indígenas resultaram em intenso sofrimento individual dos integrantes da etnia Krenak e à extrema traumatização psicossocial coletiva da etnia.

Pedidos

Além do pedido público de desculpas, que deverá ser feito pela União, Funai, Estado de Minas Gerais e Ruralminas à etnia Krenak, o MPF pede o reconhecimento judicial da responsabilidade pessoal do réu Manoel dos Santos Pinheiro como autor e partícipe do cometimento das graves violações de direitos humanos contra o povo indígena Krenak, bem como que seja reconhecida a existência de relação jurídica entre o ex-capitão, hoje major reformado da PMMG, e a União Federal, consistente no dever de reparar regressivamente o Tesouro Nacional pelas importâncias que venham a ser despendidas com o pagamento de reparações às vítimas.

Para o MPF, o ex-capitão deve ser condenado não só a pagar indenização por danos morais coletivos, como deve perder os proventos de aposentadoria ou inatividade que esteja percebendo da União Federal ou do Estado de Minas Gerais, bem como as patentes, honrarias e postos militares que porventura possua, além das funções e cargos públicos, efetivos ou comissionados, que esteja eventualmente exercendo na Administração Pública direta ou indireta de qualquer ente federativo.

À União, à Funai, ao Estado de Minas Gerais e à Fundação Rural Mineira, o MPF requer que promovam, com a participação dos Krenak – e após realização de consulta livre e informada a este povo, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, a recuperação ambiental de suas terras, esbulhadas e degradadas durante o período da ditadura militar. Para tanto, os réus devem apresentar projeto para a recuperação, a ser discutido com o povo Krenak.

Além disso, o MPF pede que os réus implementem várias ações para resgatar e preservar a cultura e a língua Krenak e promovam a tradução da Constituição Brasileira, da Convenção nº 169 da OIT e do texto temático do relatório final da Comissão Nacional da Verdade sobre as graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas.

Os réus também devem entregar, ao povo Krenak, todos os documentos governamentais, mantidos sob qualquer meio impresso, digital ou audiovisual, produzidos no período da ditadura militar, referentes à etnia, ao Reformatório Krenak e à transferência compulsória desse povo à Fazenda Guarani.

Como os Krenak ainda não estão com todas as suas terras demarcadas, o MPF quer que a União e a Funai concluam o processo de identificação e delimitação do território sagrado conhecido como Sete Salões, adjacente ao atual território da etnia.

Arquivo Nacional

Como medida de preservação da memória, a ação pede que a União sistematize e publique, no Arquivo Nacional, toda a documentação relativa às violações dos direitos humanos dos povos indígenas resultantes da instalação do Reformatório Krenak, da transferência forçada para a Fazenda Guarani e do funcionamento da Guarda Rural Indígena.

O MPF pede também que os réus promovam, após consulta prévia, livre e informada à etnia Pataxó – que se encontra assentada na terra indígena atualmente denominada “Terra Indígena Fazenda Guarani” –, a restauração da sede da Fazenda, implantando no local, em parceria com os indígenas e eventualmente com terceiros interessados, um centro de memória destinado a manter a lembrança das violações aos direitos dos povos indígenas no país e no Estado de Minas Gerais, bem como a abrigar atividades culturais a serem realizadas pelos povos indígenas, desde que o resultado da consulta prévia seja favorável a essa medida.

(Fonte: MPF em Minas Gerais)

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