Garoto de Capelinha é adotado por casal gay após ser rejeitado por “ser muito feio e negro demais”

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Casal gay conta história de adoção do filho, rejeitado por três casais heterossexuais: “Acharam ele muito feio e negro demais”.

No fim de outubro, terminado o segundo turno das eleições, um telefonema de um dos grupos de adoção empenhados na busca ativa de pais para crianças em abrigos nos avisou. Havíamos sido habilitados pela Vara de Família do Rio em julho e, três meses depois, uma criança que se encaixava em nosso perfil estava num abrigo numa pequena cidade no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Partimos, com os corações aos pulos, eu e meu companheiro de 12 anos, numa viagem que nos pareceu interminável até Capelinha, cidade no Norte de Minas onde fica o Abrigo Lar Mamãe Dolores. Trata-se de uma jornada de avião até Belo Horizonte, outro voo até Montes Claros e quatro horas de carro alugado até Capelinha.

Gilberto Scofield Jr, PH e Rodrigo Barbosa: “Somos uma família como qualquer outra família do país” – Foto: Reprodução / Blog Ser mãe é padecer na internet do Estadão

Durante a jornada, dentro do carro – e são 252 quilômetros entre Montes Claros e Capelinha – nossas cabeças doíam na expectativa do que poderia acontecer: será que ele vai com a cara da gente? E se ele não gostar de dois pais? Entre as intermináveis plantações de eucalipto que margeiam a rodovia estadual MG-308, a ansiedade só fazia crescer. Depois da ida à Justiça local, da visita ao advogado que daria entrada no pedido de guarda provisória, chegou a hora de conhecer o moleque.

O Lar Mãe Dolores é um abrigo simpático e simples para uma cidade paupérrima como Capelinha. PH estava lá: um menino de quatro anos que foi se aproximando desconfiado, mas que depois de 15 minutos, já estava brincando alegremente de carrinho com a gente. Nossos corações se encheram de esperanças, era emoção demais, carência demais de um lado e do outro, vontades súbitas de cair em prantos a troco de nada.

Negligenciado pelos pais alcoólatras, PH foi parar no abrigo aos dois anos de idade quando a mãe morreu (aos 28 anos) de complicações do vício. O pai decidiu que não queria mais criar o filho. Seis meses depois, uma mulher solteira em São Paulo o pegou para adoção, mas acabou denunciada pelo próprio irmão e por uma vizinha por maus tratos, obrigando a Justiça intervir, devolvendo-o de novo ao abrigo. Mais uma rejeição.

Antes de nós, três casais heterossexuais já haviam visitado PH no abrigo e também o rejeitaram: dois porque o acharam “muito feio”. O terceiro porque, para eles, PH era “negro demais”. Hoje, nós completamos quatro meses com ele no Rio, em nossas vidas. Ele está num pré-escolar, frequenta aulas de natação e ginástica e não poderia estar mais feliz com as novidades da nova vida. É um exercício especial de paternidade, aquela busca delicada entre dar a ele a sensação de pertencimento e acolhimento que ele precisa numa família que nunca teve e os limites que um menino de (agora) cinco anos precisa num momento em que testa tudo em relação à autoridade dos pais. Precisamos dar amor e ensinar o que é amor. Mas precisamos educar. Não faz parte de nosso planos criar um pequeno tirano. Como diz uma amiga: ser pai é a arte de dizer não. Mas não é assim em todas as famílias?

Toda essa história que aconteceu nos últimos meses e virou a minha vida – e a de meu companheiro – de cabeça para baixo, com um final mais do que feliz e que pode ser conferido por todos os amigos que nos cercam, é apenas para deixar claro o seguinte: nós – eu, meu companheiro, nosso filho PH, nossos dois gatos e nosso cachorrinho – somos uma família como qualquer outra família do país.

Esta colocação tem uma razão: a tentativa do inominável deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara e membro da bancada evangélica que se esmera como pode pela medievalização do país, decidiu ressuscitar o Estatuto da Família, que restringe a casais heterossexuais a adoção de crianças, entre outras medidas, como a proibição irrestrita do aborto. Isso num momento em que há farta literatura científica provando que crianças criadas por casais homossexuais não diferem em nada de crianças criadas por casais heterossexuais.

Portanto, os fundamentos de Cunha – o mesmo que começou sua carreira política de conchavos ao ser nomeado presidente da finada Telerj, ainda no governo de Fernando Collor de Melo (o que dá bem a ideia da trajetória política do deputado) – são meramente religiosos. E aí voltamos às intermináveis tentativas da bancada evangélica de acabar com a laicidade do Estado, transformando-o numa interpretação tosca e manipulada da Bíblia protestante.

Não, deputado Eduardo Cunha. O senhor não tem o direito de determinar o que é família num mundo em transformação e num país onde o percentual de famílias chefiadas por mulheres passou de 22,2% para 37,3%, entre 2000 e 2010, segundo dados mais recentes do Censo Demográfico de 2010. Isso não torna as adoções lideradas por casais homossexuais mais perfeitas ou melhores que as adoções feitas por casais heterossexuais. Simplesmente não há diferença constatada por qualquer estudo científico sério.

O que o Estatuto da Família faz é dar aos casais heterossexuais o monopólio da criação “perfeita” de filhos, quando todos nós conhecemos casais heterossexuais cujos filhos são desajustados ou simplesmente maus. O noticiário está aí cheio de exemplos de rapazes e moças que atropelam e matam pessoas sem prestar socorro. Ou bandos de jovens de classe média bem criados cuja maior diversão é tacar fogo em mendigos ou bater e espancar prostitutas, gays e nordestinos.

Não, deputado Eduardo Cunha. A paternidade virtuosa não é um monopólio da heterossexualidade. E caso a sua religião não pregue a tolerância, preste atenção num fato muito simples: toda a criança adotada por um casal de gays ou de lésbicas foi abandonada/espancada/negligenciada por um casal heterossexual, esse mesmo que o senhor julga serem os únicos capazes de criar filhos “normais”.

(Fonte: Blog Ser mãe é padecer na internet do Estadão)

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