Os traços urbanos são diferentes, mas Diamantina foi influência para que o arquiteto e urbanista Lucio Costa projetasse Brasília. Na época, disse que o município mineiro tinha “beleza sem esforço”
Flores debruçadas sobre os telhados e portões fizeram Lucio Costa sentir pureza na cidade mineira – Foto: Ramon Lisboa/EM
A cosmopolita Brasília, com prédios modernos e amplas avenidas asfaltadas, parece bem diferente da despojada Diamantina, com suas ruelas de calçamento de pedra e casario colonial. A cidade da Região Central de Minas, porém, foi uma das influências do arquiteto e urbanista Lucio Costa (1902-1998). Ao desenhar o “avião” no solo do Planalto Central, à beira do Lago Paranoá, ele estava impregnado pela “pureza”, pela “beleza sem esforço”, como descreveu o que viu ao visitar, em 1924, a terra natal de Juscelino Kubitschek. “Mal sabia que, 30 anos depois, iria projetar nossa capital para um rapaz da minha idade nascido ali”, escreveu, espantado pela coincidência.
Filho de diplomata, Lucio Costa nasceu na França, em 1902, mesmo ano em que JK veio à luz. Graduou-se em arquitetura em 1924, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, comissionado pela Sociedade Brasileira de Belas Artes, visitou Diamantina. A viagem foi proposta por um de seus professores, José Marianno Filho, um dos principais defensores da arquitetura neocolonial, que louvava a tradição brasileira e lutava contra “os estilos de conserva do academismo francês”, como escreveu. Acreditando que os recém-formados ignoravam os “fatos elementares da evolução arquitetônica nacional”, decidiu mandar alunos para cidades históricas de Minas. Os outros destinos foram Ouro Preto, São João del-Rei e Congonhas.
No livro Registro de uma vivência, de 1995, Costa afirma que chegou a Diamantina depois de “30 e tantas horas de trem, com baldeação em Corinto”. Na estação, percebeu ao seu lado a “figura empertigada” do poeta parnasiano Alberto de Oliveira, que dizia a uma amigo: “Chegar… partir… eis a vida”. Ao desembarcar em seu destino, o urbanista se surpreendeu: “Caí em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi uma revelação: casas, igrejas, pousada dos tropeiros, era tudo de pau a pique”.
Da esquerda para a direita, Oscar Niemeyer, Israel Pinheiro, Lucio Costa e JK analisam o projeto de Brasília
FIGUEIRA – Em passeio pela cidade – “um piano distante tocava”, recordou –, saiu a caminhar pelas capistranas, “trilhas de lajes maiores no meio das ruas empedradas”, que ainda hoje ajudam os moradores e turistas a andar com mais conforto. “No alto de uma ladeira”, avistou os “dois sobrados do colégio de freiras, um ainda setecentista, o outro já do Império, ligados por um elegante passadiço”. Situados na Rua da Glória, no Centro Histórico, os dois prédios abrigam hoje o Instituto Casa da Glória, pertencente ao Instituto de Geociência da UFMG.
Mais tarde, Costa viu “no largo fronteiro a uma igreja o típico cruzeiro de madeira guarnecido dos símbolos do martírio, com uma figueira enroscada, nascido do seu pé”. O templo a que Costa se refere é a Igreja Nossa Senhora do Rosário, do século 18. Com os anos, a figueira cresceu e se ergueu junto ao cruzeiro, como se ele fizesse parte da planta. Depois, a árvore caiu. No mesmo canteiro surgiu nova figueira. Entre suas compridas ramificações, estão apoiados os restos da “antepassada”, e o cruzeiro, bastante danificado.
Continuando a caminhada, o arquiteto passou diante da vistosa casa de Chica da Silva, “a famosa amante do contratador”, define Costa, em referência ao homem com quem a escrava alforriada manteve união estável no século 18, o riquíssimo explorador de minas de diamante João Fernandes de Oliveira. A fachada do museu ainda é “resguardada por extenso muxarabi”, um grande balcão com treliças de madeira. “E, defronte”, prossegue, “a capela do Carmo, cuja chave o sacristão Zacarias – com sua bonita mulher de pés no chão – me confiara para que ficasse à vontade, na solidão da igreja fechada, pintando uma aquarela do seu lindíssimo interior”.
ROSEIRAS – O arquiteto se hospedou no então Hotel Roberto, desativado há décadas. O lugar era cuidado por Deodoro Augusto de Oliveira e sua esposa, Maria José de Oliveira, já falecidos. “O prédio pertencia a um primo quando foi desapropriado pela prefeitura, há uns 10 anos”, relata o joalheiro Antônio de Pádua Oliveira Neto, de 75 anos, sobrinho do casal. Integrante do conjunto tombado pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o prédio inutilizado, na esquina da Rua Direita com a Travessa do Carmo, exibe sinais de desgaste e reclama reforma.
Em “casas mais afastadas do centro urbano”, Costa avistou “conjuntos maciços de jabuticabeiras, bem como roseiras debruçadas sobre a coberta telhada dos portões”. Os aglomerados de jabuticaba não são mais tão comuns, mas acha-se em terrenos do Bairro Arraial de Baixo, em meio a bananeiras, pitangueiras, mangueiras e outras árvores. Na Rua da Caridade, no Centro, copas das jabuticabeiras se mostram entre as casas. No quintal da aposentada Leonice da Conceição Santos, de 70, há quatro pés. “Quando nasci eles já existiam, são centenários.”
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Superficialidade
Ao listar as referências usadas na concepção do projeto do plano-piloto de Brasília, sob o comando do presidente JK, Costa ressaltou: “A pureza da distante Diamantina dos anos 20 marcou-me para sempre”. A filha dele, a também arquiteta Maria Elisa Costa, não sabe quanto tempo o pai ficou na cidade mineira. “Acredito que tenha sido em torno de um mês, não menos que isso. Ele nunca voltou lá. A viagem foi determinante no seu rumo profissional”, disse. Após a passagem por Diamantina, que recebeu da Unesco o título de Patrimônio Cultural da Humanidade – assim como Brasília –, Costa se desencantou com o estilo neocolonial. “A revisão no suposto estilo neocolonial”, analisa a pesquisadora Paula André, em artigo acadêmico, “ultrapassaria a superficialidade e a falsidade dos historicismos e construiria os fundamentos da arquitetura moderna como uma arquitetura verdadeira.”
LINHA DO TEMPO
1902 – Lucio Costa nasce em Toulon, França, mesmo ano em que JK vem à luz em Diamantina
1916 – Chegou ao Brasil após morar em vários países da Europa
1924 – Ele forma-se em arquitetura pela Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro
1924 – Visita Diamantina, bancado pela Sociedade Brasileira de Belas Artes
1927 – Volta a Minas para recuperar a saúde. Visita Sabará, na Grande BH, e o Santuário do Caraça, na Região Central
1957 – Inscreve seu projeto do plano-piloto de Brasília em concurso promovido pelo governo federal e vence
1960 – Brasília é inaugurada
1988 – Morre no Rio de Janeiro, aos 96 anos
(Fonte: Estado de Minas)