A taxa de recusa familiar para doação de órgãos e tecidos em Minas Gerais permanece próxima dos 50%, e o número de transplantes realizados (até outubro foram 1.310), quando comparado a 2019, continua trajetória de queda de mais de 30%, no contexto da pandemia de covid-19.
“O cenário é o mesmo. A recusa familiar aumentou muito com a pandemia, antes era de 30%. O acolhimento hospitalar para reduzir as negativas foi impactado pelos protocolos sanitários estabelecidos para fazer frente à covid-19, e isso refletiu no comportamento das famílias doadoras”, explica o cirurgião e diretor do MG Transplantes, Omar Lopes Cançado.
Aprimoramento
Outro fator, decorrente dos novos protocolos sanitários, e que teve impacto sobre o número de transplantes realizados, foi a exclusão de todos os prováveis doadores que apresentavam algum sintoma gripal, de modo a diminuir o risco de transmissão da covid-19.
Segundo o diretor do MG Transplantes, para que o Brasil alcance resultados melhores é necessário que, junto com o crescimento da adesão familiar às doações, a identificação do potencial doador seja aprimorada. Para isso, todos os municípios deveriam ser capazes de realizar o protocolo de morte encefálica, realidade que não é vivenciada por diversas cidades brasileiras, devido à falta de equipamentos e especialistas.
Ao mesmo tempo, todos os hospitais também deveriam ser capazes de notificar o diagnóstico de morte encefálica às centrais de captação de órgãos, mas isso não ocorre. “Grande parte dos hospitais ainda não notifica. De modo geral, a notificação é muito aquém do que deveria”, frisa Lopes Cançado.
Reinserção social
Em Minas, por exemplo, a notificação é de 30 por milhão de população. O ideal é que fosse de, aproximadamente, 100 por milhão. Do mesmo modo, o número de doadores por milhão de população também fica bastante distante do ideal. Na Espanha, país que, ao lado dos Estados Unidos, serviu de modelo para o sistema brasileiro de transplantes, há 40 doadores por milhão de habitantes, em Minas, esse número, atualmente, é de 10 doadores por milhão. Antes da pandemia era de 14 por milhão de pessoas.
Omar Cançado salienta que as doenças que requerem a realização de transplantes são do tipo que limitam consideravelmente a vida das pessoas, quando não as matam. “Elas se encontram tão enfermas, que não conseguem realizar atividades simples do dia a dia. A importância da doação e do transplante é reinserir essas pessoas à sociedade”.
História singular
Na contramão do crescimento da recusa familiar, a história da musicista ucraniana Mariya Serebryakova, de 41 anos, não somente pode inspirar a adesão à doação, como também mostrar que a conscientização, a solidariedade e a empatia são bases para a mudança do cenário dos transplantes.
Masha (como era conhecida) estava no Brasil, desde 2013, na condição de refugiada humanitária, devido à guerra que já dura oito anos em sua cidade natal. Como uma das muitas consequências do conflito, ela perdeu sua nacionalidade ucraniana e não adquiriu outra.
Violinista profissional, professora de violino, russo e coreano, assim como ciclista semiprofissional, capoeirista e vegana por compaixão pelos animais, Serebryakova era, sobretudo, especialista em doar-se às pessoas. Declarou-se doadora de órgãos e também doava sangue periodicamente.
Acidente
No auge da pandemia de covid-19, impedida de trabalhar devido às restrições impostas pelos protocolos das autoridades sanitárias, que suspenderam a realização de eventos, Masha dedicou-se, de forma ainda mais intensa, ao trabalho voluntário em asilos e hospitais oncológicos, que visitava para levar música e leveza. Além disso, também encontrava disposição para percorrer, com sua bicicleta, os 16 quilômetros que separam os bairros Santo Antônio, na região Sul de Belo Horizonte, e Jardim Canadá, em Nova Lima, a fim de ajudar a preparar marmitas num projeto destinado a pessoas carentes.
Por ironia do destino, a mesma bicicleta que levava Masha a seus compromissos e lhe dava tanta alegria nas competições de velocidade e treinos, a conduziu ao fim prematuro de sua vida, em uma colisão com um ônibus. O impacto da batida causou o traumatismo raquimedular que encerrou a trajetória da quase brasileira Mariya Serebryakova (segundo os amigos, ela estava providenciando sua naturalização por se sentir brasileira), e deu lugar a uma trágica continuidade de suas ações de amor ao próximo.
Como estrangeira e sem parentes no Brasil, legalmente, ela não poderia ser submetida à cirurgia para a doação de órgãos, apesar do desejo manifestado em vida tanto aos amigos brasileiros, como à mãe idosa que vive em Donetsk, cidade ucraniana distante mais de 11 mil quilômetros da capital mineira.
Além das fronteiras
Foi necessária uma complexa articulação internacional que envolveu o Consulado da Ucrânia no Brasil, autoridades e instituições brasileiras e ucranianas, para que a mãe de Masha fosse informada do óbito da única filha e constituísse dois, dos muitos amigos de Mariya, o advogado Gabriel Guimarães e o musicista Yan Latinoff Vasconcellos, como seus procuradores para autorizar a doação dos órgãos da filha.
Entre o acidente e a declaração da morte encefálica, passaram-se três dias até a retirada dos órgãos. Seu gesto permitiu que pessoas que aguardam na fila de transplantes (atualmente são mais de 4,5 mil no estado) possam ter uma nova vida ao receber as córneas, rins, fígado e pâncreas da altruísta Mariya Serebryakova. Como bem sintetizou Yan Vasconcellos, “a doação dos órgãos da Masha foi a última etapa de uma vida de doação ao outro”.
Ainda este mês, parte de suas cinzas vão nutrir as raízes de uma árvore que será plantada pelos amigos em sua homenagem e outra parte será enviada para sua mãe na Ucrânia. “Se as pessoas soubessem a diferença que a doação de órgãos faz na vida dos transplantados, se soubessem o quão sério é o trabalho do MG Transplantes, certamente todos seriam doadores”, finaliza Gabriel Guimarães.
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