Oportunistas aproveitam período de seca e dizimam cardumes do Velho Chico

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Pelo menos 25, das 41 ações que compõem o Projeto de Revitalização, não receberam recursos em ações diretas do governo federal

Pelo menos 25 ações das 41 que compõem o Projeto de Revitalização do Rio São Francisco não receberam recursos em ações diretas do governo federal ou repasses para municípios, de acordo com dados da Controladoria-Geral da União de 2012 a 2014. Entre os planos deixados de lado, há ações que especialistas consideram prioritárias, por interferir diretamente na quantidade e qualidade da água do manancial, como o reflorestamento de nascentes, margens e áreas degradadas, recuperação e controle de processos erosivos e as obras de revitalização e recuperação dos cursos d’água da bacia. Enquanto isso, os peixes que sobrevivem a esse cenário degradado enfrentam pescadores oportunistas que agem impunemente, em plena luz do dia, ampliando a devastação do Velho Chico.

Enquanto barrancos erodidos e bancos de areia dão ideia de quanto a seca tomou do leito do rio em Iguatama, estaca de bambu sustenta rede que cruza quase todo o canal – Foto: Leandro Couri/Estado de Minas

Os alertas de que a situação do Velho Chico era crítica foram muitos. Relatos de pescadores que não fisgavam mais peixes em pontos tradicionais como Januária e Manga, no Norte de Minas, barqueiros encalhados em bancos de areia ao longo do curso, agricultores vendo o nível da bacia hidrográfica baixando e expondo o leito em pontos onde as águas nem sequer correm mais. Minguou até uma das principais nascentes, na Serra da Canastra, e a Represa de Três Marias chegou ao nível mais baixo da história, com 4,4%. Situações que não foram suficientes para sensibilizar o poder público, que vem abandonando o Velho Chico à devastação. “É impressionante o tanto que o rio está raso. Virou uma praia. Ninguém pesca mais dourado e outros peixes, só pequenos. Mesmo assim, o lixo ainda desce o rio. Já encontramos até televisão aqui”, afirma o aposentado Joaquim Messias do Vale Filho, de 68 anos, que pesca há 30 no rio, em Iguatama.

“Essas (ações de revitalização) estão entre as necessidades principais da bacia. E a tecnologia para isso existe. Com o cercamento das nascentes e a preservação das matas ciliares, aumentamos a capacidade de recarga do reservatório e dos afluentes. Esse equilíbrio dos rios e dos aquíferos (lençóis subterrâneos) depende da cobertura vegetal”, aponta o biólogo Ricardo Motta Pinto Coelho, professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Predadores humanos

Em Iguatama, primeira cidade cortada pelo rio, a devastação não fica restrita ao assoreamento, que após anos bloqueou as águas rasas do Velho Chico. Nas lagoas que se formaram no leito seco, peixes confinados são cercados por pescadores. Nos canais por onde o rio ainda corre, redes são estendidas de margem a margem, encurralando cardumes. “É um crime e a gente sabe que nossos colegas estão fazendo. Não sobra nem 30% da largura do canal para os peixes descerem. Mas está muito difícil de pescar e muita gente que precisa do peixe está no desespero”, disse um dos pescadores locais, que pediu para não ser identificado. “A polícia passa, mas parece que não vê nada”, denuncia.

A pesca em uma condição de estiagem tão severa, mesmo que liberada em algumas modalidades (a rede usada pelos pescadores é proibida), deveria ter sido suspensa no São Francisco, na opinião do biólogo da UFMG. “Basta bom senso para ver que não é época de fazer pesca alguma. O impacto disso na fauna pode ser terrível, mesmo fora do defeso (período de proibição da captura por causa da reprodução dos animais)”, afirma Ricardo Coelho.

O quadro de agonia e abandono do Velho Chico é verificado também em Ibiaí, no Norte de Minas, a 404 quilômetros de BH. A administração municipal cobra do governo federal a liberação de recursos para a recuperação de nascentes, uma das alternativas para que o Rio da Integração Nacional volte a correr como antes. Primeiro município abaixo da foz do Rio da Velhas, Ibiaí se beneficiava da opulência do Velho Chico, que chegava a 600 metros de largura e provinha fartura de peixes. Hoje, o volume caiu tanto que o canal que corre contido por um mar de areia mal supera os 60 metros.

O secretário municipal de Meio Ambiente, Marcos Rogério Martins, acredita que, se o governo federal tivesse realmente executado as obras de revitalização, o São Francisco não estaria em um nível tão baixo, mesmo com a rigorosa estiagem. “É a primeira vez que vejo o rio desse jeito, quase seco. Isso deixou todo mundo aqui abismado”, afirma Martins, enquanto caminha pelo leito seco.

Sinais de fogo no areal denunciam que pescadores agravam também esse cenário de degradação. “Pescadores profissionais estão se aproveitando da seca para tirar os poucos peixes que ainda existem com tarrafões (redes de grandes dimensões, que são proibidas), sem respeitar tamanhos mínimos, principalmente nos poções (lagoas formadas no leito seco)”, conta Marcos Ximenes, dono de pousada no município, que amarga queda de 80% no movimento por causa da devastação.

Veja imagens da degradação do São Francisco

Descaso é ameaça a projeto bilionário

O nível extremamente baixo das águas do São Francisco e das bacias de seus afluentes coloca em xeque a eficácia do projeto de transposição das águas do Rio da Integração Nacional para o semiárido de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, na opinião de especialistas e ambientalistas. Eles salientam a importância de uma revitalização que garanta quantidade e qualidade de água, antes que os recursos hídricos sejam desviados. A vazão mínima das duas captações que estão sendo construídas no curso do Velho Chico, entre a Bahia e Pernambuco, é de 26,4 metros cúbicos por segundo (m³/s) cada, volume superior à captação mineira no Rio Paraíba do Sul, na Zona da Mata.

Para que o empreendimento, que custará R$ 8,2 bilhões, possa usar sua capacidade máxima e só então abastecer todos os reservatórios do semiárido, a represa de Sobradinho, na Bahia, precisa atingir 94% de sua capacidade – volume que hoje, com a estiagem, está em 27,2%, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico. Só então a estrutura da transposição bombearia 127m³/s. A vazão equivale ao consumo da cidade de Januária, no Norte de Minas, município de 68 mil habitantes à beira do Velho Chico, que enfrenta graves problemas de abastecimento e requer ampliação de sua captação até o ano que vem, para não entrar em colapso. “Somos contra a transposição, principalmente porque é um desperdício de verbas públicas que não vai resolver o problema do abastecimento do Nordeste. Precisamos de trabalhos sérios, bem-estruturados, de revitalização para que o rio volte a ter água”, salienta o médico e ambientalista Apolo Heringer Lisboa, um dos idealizadores do Projeto Manuelzão, de conservação do Rio das Velhas, o maior afluente do São Francisco.

“A transposição das bacias avança, mas desrespeita a cessão de outorga da ANA, que prevê diversas ações de revitalização que constam do Estudo de Impacto Ambiental. Não é exagero dizer que 99,9% das ações não foram feitas. Com isso, a outorga não tem condição de cumprir sua função. O volume mínimo, de 26,4 m³/s, é muito pouco para justificar um projeto bilionário como esse”, avalia o biólogo e professor da UFMG Ricardo Coelho.

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) admite que o Projeto de Revitalização do Rio São Francisco (PRSF) passa por uma auditoria e que várias ações serão reformuladas. Contudo, essa avaliação ainda se encontra em fase de licitação, a ser financiada pelo Programa Interáguas, do Banco Mundial. “Em que pese as restrições orçamentárias apontadas – em razão de cortes ou contingenciamento do orçamento, o ministério decidiu empreender uma avaliação do programa”, informou a pasta, por meio de nota. A avaliação seria feita, de acordo com o texto divulgado, para “identificar acertos, corrigir desvios, calibrar ênfases e prioridades e orientar sua continuidade pelos próximos 10 anos, de forma que possa tornar-se um modelo de atuação em bacias hidrográficas”.

O Ministério da Integração Nacional defende a transposição e afirma que o projeto, que tem 64,6% das obras executadas, beneficiará 12 milhões de pessoas e emprega 11.180 trabalhadores.

Água em debate

Em meio à crise de abastecimento de água que ameaça o país, dois eventos trazem a Belo Horizonte experiências e especialistas internacionais no setor. Durante o 18º Congresso Brasileiro das Águas Subterrâneas, realizado na capital mineira de terça a sexta-feira, especialistas voltam as atenções para essa fonte de recursos hídricos. De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (Abas), Waldir Costa Filho, ainda há muito desconhecimento sobre o uso dos aquíferos localizados abaixo do solo. A exploração dessas águas pode significar, na avaliação dele, uma melhor gestão dos recursos hídricos, já que 97% do total de água disponível para consumo é subterrâneo. Em novembro, o tema água volta à pauta na capital com o workshop Water crisis – Crise nas águas, no câmpus da UFMG, nos dias 17 e 18.

(Fonte: Estado de Minas)

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