O agricultor familiar Sebastião Frade Martins pertence a uma comunidade quilombola, no município de Diamantina, localizada na porção meridional da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Com um jeito simples e a fala mansa, ele conta que passou boa parte dos seus 75 anos colhendo flores sempre-vivas nas redondezas. “De manhã cedo a gente sai para apanhar a flor. No outro dia, a gente volta a colher outra vez. E fica uma semana, duas, até três sem voltar para casa”, relata.
A rotina do seu Sebastião é a mesma de outras dezenas de agricultores que, em algumas épocas do ano, chegam a deixar a casa por vários dias para dormir em lapas, que são grutas existentes na serra. Desta forma, eles podem ficar mais próximos das áreas onde florescem as sempre-vivas, que são espécies nativas muito usadas para produção de artesanato e em decorações.
Esta atividade tradicional, que resiste ao tempo por várias gerações, acaba de obter um reconhecimento internacional. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), concedeu ao sistema agrícola dos apanhadores e apanhadoras de flores sempre-viva o selo de Sistema Agrícola Tradicional de Importância Mundial (Sipam).
O selo é concedido a comunidades tradicionais que preservam técnicas seculares de manejo da terra e desenvolvem em seu território uma relação sustentável com a natureza. Minas Gerais é o primeiro estado do país a obter este reconhecimento da FAO, que abrange as comunidades Pé de Serra e Lavras, no município de Buenópolis; Vargem do Inhaí, Mata dos Crioulos e Macacos, localizadas em Diamantina; e também a comunidade Raiz, em Presidente Kubitschek. Cerca de 1.500 pessoas serão beneficiadas, muitas de comunidades quilombolas.
Ao obter o reconhecimento, a expectativa é que sejam ampliadas as ações de preservação, transmissão dos conhecimentos e de acesso a novos mercados por parte dos apanhadores. “O segredo do sucesso para conseguir o reconhecimento foi a consciência das comunidades e o bom grau de organização social, focado na manutenção do estilo de vida próprio, além da coesão na luta contra as ameaças, como o avanço dos plantios de monocultura de eucalipto”, explica o gerente de projetos da FAO no Brasil, Marcello Broggio.
Modo de vida
O reconhecimento da FAO não é só pela tradição das comunidades de coletar flores. Mas por todo o modo de vida, que abrange aspectos históricos, sociais e de relação com o meio ambiente. No caso dos agricultores da porção meridional da Serra do Espinhaço, eles também se dedicam a outras atividades para o sustento familiar, como as pequenas criações de animais, a coleta agroextrativista de frutos, além da roça de toco.
A roça de toco é um sistema que já era utilizado pelos indígenas. Ele consiste no manejo de pequenos terrenos, geralmente nas partes mais baixas, onde há mais umidade. O acúmulo de matéria orgânica na área é fundamental para a fertilidade do solo. “Quando se faz a roçada e a queima superficial, é disponibilizado o nutriente para a produção dos próximos anos. O fogo queima apenas o material que está acima do solo”, explica o professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Claudenir Fávero.
Nas roças de toco, há plantio de hortaliças, milho, frutas, mandioca e feijão, além de plantas medicinais. É dessas roças que sai grande parte da alimentação dos moradores das comunidades, que também comercializam parte da produção. “Nós não mexemos apenas com a sempre-viva. Criamos animais e temos também a roça de toco. Mas a gente precisa da sempre-viva para ajudar no sustento”, diz a dona Jovita Maria Correa, enquanto prepara os arranjos das flores que colhe.
“Esses grupos são descendentes de indígenas que ocuparam a região, de portugueses e de africanos que aqui foram escravizados. Essas comunidades rurais, que se autodenominam apanhadores de flores sempre-vivas, têm uma identidade territorial e expressam um modo de vida que combinam estes ambientes”, explica Fernanda Monteiro, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP).
Foto: João Roberto Ripper / Emater-MG
Vida no alto da serra
Na época das chuvas, os apanhadores de sempre-viva fazem a coleta das plantas ao pé da serra. Já nos meses mais secos, é preciso ir morro acima, a mais de mil metros de altura para encontrar as flores. “Este momento em que eles estão no alto da serra é quando as diferentes comunidades se encontram. É um regime agrário de uso comunitário das terras, em que o parentesco é uma grande referência de direito de uso. É o que chamamos de direitos costumeiros”, comenta a pesquisadora da USP.
A apanhadora de flores Maria de Fátima Alves, uma das coordenadoras da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), conta que no período em que os apanhadores se deslocam para as partes mais altas da serra, eles também levam animais e até fazem pequenos plantios. “É comum levar animais, como porco e galinha. Costuma até fazer a roça. É a vida que segue o ciclo normal em cima da serra. E as moradias geralmente são as lapas”.
As flores sempre-vivas são endêmicas e ganharam este nome porque, mesmo depois de colhidas e secas, conservam sua forma e coloração. Além das flores, são coletadas folhas, frutos secos e sementes. Até o momento, já foram identificadas 240 espécies nativas manejadas, das quais 90 espécies são as chamadas flores e botões.
“Apesar de ser uma atividade tradicional da região, há poucos estudos sobre a cadeia de valor das flores sempre-vivas, com poucos dados estatísticos. Além disso, as comunidades demandam melhorias no beneficiamento da produção”, afirma Maria de Fátima.
Os produtos são destinados ao mercado de plantas ornamentais secas. As sempre-vivas e outras plantas ornamentais colhidas pelos apanhadores das comunidades reconhecidas pela FAO geralmente são comercializadas para atravessadores. Ainda são poucos que produzem o próprio artesanato, que além de muito procurado no mercado interno, também é exportado para Estados Unidos, países da Europa e da Ásia.
“As comunidades rurais reconhecidas pela FAO recebem assistência técnica da Emater-MG em suas atividades produtivas e também na organização para acesso ao mercado. Além disso, trabalhamos em parceria com diversas instituições para elaboração do Plano de Ação para Conservação Dinâmica do Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço Meridional”, explica Márcia Campanharo, coordenadora técnica estadual da Emater-MG, empresa vinculada à Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa).
O plano foi elaborado por um grupo formado por apanhadores de sempre-vivas, secretarias e órgãos do Governo de Minas Gerais, universidades, prefeituras e ONGs. O objetivo é propor ações para garantir a manutenção do ambiente manejado pelas comunidades, desenvolver pesquisas para dar suporte à manutenção do sistema agrícola tradicional, além de promover a inclusão econômica e o acesso a políticas públicas que garantam o reconhecimento e a manutenção dos apanhadores de sempre-vivas.
“Este reconhecimento vai dinamizar a implantação do Plano de Conservação Dinâmica que tem estratégias e linhas de ação definidos a partir de processos participativos pelas comunidades, com ações relacionadas à integridade da paisagem manejada, cultura e biodiversidade”, afirma Maria de Fátima.
Foto: João Roberto Ripper / Emater-MG
Reconhecimento da FAO
O sistema de Minas Gerais passa a ser o quarto Sipam da América Latina. Os outros são o corredor Cuzco-Puno, no Peru, o arquipélago de Chiloé, no Chile, e o sistema de Chinampa, no México. Em todo o mundo são apenas 59 patrimônios agrícolas com este reconhecimento.
O anúncio oficial do reconhecimento ocorreu na última quarta-feira (11/3), durante uma solenidade em Brasília, com a presença de apanhadores de sempre-vivas e de representantes da FAO, do Governo de Minas Gerais, do Governo Federal e prefeitos.
Para conseguir o reconhecimento de Sistema Agrícola Tradicional de Importância Mundial (Sipam), os apanhadores de sempre-viva apresentaram a candidatura com a entrega de um dossiê à FAO Brasil. A solenidade de formalização da candidatura foi durante o I Festival dos Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas, realizado em junho de 2018, em Diamantina. A candidatura recebeu o apoio de pesquisadores, acadêmicos e membros de órgãos públicos que ajudaram a criar o documento.
Em julho de 2019, um comitê científico da FAO esteve na região para avaliar a pertinência da candidatura ao selo e o envolvimento dos governos local, estadual e federal, das universidades e da Codecex.
“A capacidade de agregar parceiros na sociedade civil da região e nas instituições de pesquisa explica a ótima qualidade do dossiê. O apoio dos municípios e do Governo de Minas Gerais também foi determinante para conseguir o reconhecimento como Sipam”, afirma Marcello Broggio.
As escolhas são feitas por um grupo composto por sete membros de diferentes países, nomeados pela FAO. Todos os integrantes têm méritos acadêmicos de destaque. Geralmente, o grupo se reúne duas vezes por ano para avaliar as candidaturas que podem receber o reconhecimento como Sipam.
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