Desconfiança sobre qualidade da água muda rotina em Governador Valadares

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Embora uma das frases mais usadas seja “legado para o futuro”, o desastre ambiental que exterminou a vida no rio Doce e agravou uma crise hídrica sem precedentes alterou o “presente” dos moradores de Governador Valadares.

Além dos prejuízos ambientais, sociais e econômicos, a tragédia marcou a vida dos valadarenses. A busca por água limpa virou necessidade básica, exigiu estrutura de guerra e foi motivo de prisões.

Um mês após a tragédia, os que tiram o sustento do rio repensam o futuro. “Sabemos que o rio está morto e não temos expectativa de melhoria nem a longo prazo”, diz Rodolfo Zulske, presidente da colônia de pescadores Z-19, que reúne 500 profissionais.

Ele lamenta o sumiço de espécies como o piau-vermelho e o cascudo, dizimados pela lama. “Na verdade, nosso rio vai continuar morto por cem anos”.

DESVALORIZAÇÃO

A administradora Rochelli Goulart Ramos, de 34 anos, chegou a abandonar a cidade por causa da falta de água e se instalou temporariamente na casa de parentes, em Teófilo Otoni. De volta ao lar na Ilha dos Araújos, não consegue colocar a vida em ordem.

Os pais dela pensam em se mudar de vez, mas, como o preço dos imóveis caiu, fica difícil negociar. “A água que sai da torneira tem cheiro e gosto ruins e está amarela. Tive coceira na pele e o meu cabelo está péssimo. Não temos condições de comprar água para tomar banho, apenas para beber e cozinhar, o que é um alento. Quem não tem enfrenta filas enormes”, diz Rochelli.

Os reflexos da contaminação do rio Doce e interrupção do abastecimento são sentidos em diversos setores, como no comércio, que registra queda de 70% nas vendas, e nos bares, hotéis e restaurantes, onde os prejuízos chegam a 100%.

O Hotel Panorama, por exemplo, concedeu férias coletivas e fechou as portas por uma semana, dias após o rompimento da barragem. Embora tenha reaberto uma semana depois, ainda opera com 30% da capacidade.

“Fechamos porque não havia perspectiva e as previsões eram sombrias. Mas o abastecimento foi retomado logo. O problema é que os clientes ainda desconfiam da qualidade da água que sai das torneiras e evitam a cidade”, conta o proprietário, Marcelo Moura Neto, que calcula prejuízos acima de R$ 70 mil.

No ápice da crise hídrica, contratar um caminhão-pipa com 8 mil litros custava R$ 1.500, quase o dobro dos dias normais, e o hotel precisaria de no mínimo dois por dia. A polícia até que tentou coibir os abusos na elevação dos preços, especialmente na venda da água mineral, mas apenas um flagrante com prisão foi feito.

No Hotel Realminas, o prejuízo superou 25%, e só não foi maior porque o estabelecimento recebeu hóspedes recusados de outros hotéis. O gerente Bernardo Matoso calcula ter gastado, a cada quatro dias, R$ 10 mil com logística para obter água. “Tivemos de alugar caminhões-pipa, bombas e comprar caixa d’água”, explica, contando que a água voltou em uma semana, mas a desconfiança afasta turistas de negócios da cidade.

Lama da barragem de Fundão contaminou o Rio Doce – Foto: Diário do Rio Doce

Prefeita aponta prioridades e sugere termo de ajustamento de conduta

Os prejuízos da tragédia causada pelo rompimento da barragem da Samarco ainda são incalculáveis. “Nossa luta é garantir que tudo seja ressarcido e que nenhuma cidade pague a conta que não é sua. Juntos, vamos virar a página”, diz a prefeita de Valadares, Elisa Costa.

Segundo ela, os problemas são ambientais e socioeconômicos. Mas todos os cálculos, até agora, são preliminares e deverão ser revistos porque o problema está em curso. Além dos rumores sobre a possibilidade de novos rompimentos, a lama que vazou em 5 de novembro ainda desce o rio Doce.

“Nossa estrutura é menor que o problema. É uma situação nova, ninguém viveu isso antes no país e estamos aprendendo a lidar”, enfatiza Elisa, ressaltando que toda ajuda disponibilizada por governos e sociedade chegou a Valadares.

Ações

Garantir água para a população foi a prioridade. Dentre as medidas emergenciais está o ressarcimento da prefeitura pelas despesas nos últimos 30 dias. Garantir o mesmo para pescadores, agricultores, pecuaristas e demais “órfãos” do rio Doce é outra necessidade imediata.

A médio prazo, informa Elisa Costa, está a construção de uma nova fonte de captação de água no rio Suaçuí Grande ou Pequeno, de uma estação de tratamento móvel no rio Capim e a modernização do laboratório da empresa municipal de saneamento (Saae), que teve queda na receita.

Valadares também vai cobrar a recuperação da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, a proteção das nascentes, dos afluentes e da mata ciliar, além do imediato desassoreamento do curso d’água. A intenção é formalizar tudo em um termo de ajustamento de conduta . “Se necessário, entraremos na Justiça”, diz Elisa.

Tensão constante

“A cidade está estressada, emocionalmente abalada, mas vamos transformar esse momento em realizações. Valadares está demonstrando que tem capacidade de superação, solidariedade e determinação na busca de soluções”, afirma a prefeita.

“O que aconteceu está exigindo de todos uma mudança de atitude e comportamento diante do meio ambiente e do rio, um grande símbolo de vida. É um legado educativo”, encerra Elisa Costa.

Ribeirinhos de várias cidades cortadas por rio ficam ‘órfãos’

São vários os projetos de recuperação dos danos resultantes do rompimento da barragem de Fundão em Mariana, mas a lama que desce o rio Doce também leva para o mar o que não tem preço: a companhia de um gigante que foi fonte de lazer e sobrevivência.

Há duas semanas, ao descer o rio Doce para identificar os “órfãos” que a lama fez ao longo de 600 quilômetros, a equipe do Hoje em Dia encontrou desconsolada a dona de casa Sandra Lúcia de Castro, de 46 anos. Ela nasceu às margens do rio, no distrito de Pedra Corrida, em Periquito, no Vale do Aço, onde ainda vive. No mesmo lugar, os três filhos crescem.

“Lavava roupas, vasilhas e os meninos brincavam ao redor, se distraiam pegando peixinhos. Era uma festa. Eu também cresci nessa prainha, acompanhando minha mãe. Hoje a água e só lama e tem cheiro de morte”, disse.

Outra história comovente foi a do aposentado José Lino de Marques, de 90 anos. Apesar do cenário catastrófico, ele consegue enxergar um futuro diferente, mais otimista para o rio Doce. “A água vai se recuperar rapidamente”.

Até lá, o aposentado terá muito trabalho. Os 40 porcos e galinhas que cria para vender bebiam da água do rio. Agora, tem de buscar de carroça em um açude.

“Não tenho força para ficar para lá e para cá. Sorte que a natureza dá um jeito em tudo. Daqui a pouco, cai uma chuva boa e lava essa lama toda”.

(Fonte: Jornal Hoje em Dia / Repórter: Ana Lúcia Gonçalves)

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